Francisco e a pesada ofensiva de silêncio

Os críticos do Papa, que defendem que deve resignar e o acusam de encobrir casos de pedofilia, estão à beira de um ataque de nervos: o sumo pontífice simplesmente não reage.

A «bomba atómica» já tem quase quinze dias e o Papa Francisco – acusado de proteger e promover o cardeal americano Theodore McCarrick, que abusou de seminaristas – continua sem dizer uma palavra sobre o escândalo e sobre os argumentos dos que pedem que resigne. Mas, esta semana, o sumo pontífice parece ter adotado uma nova estratégia. 

Todos os dias de manhã, Francisco celebra missa na capela da Casa de Santa Marta, onde escolheu viver quando decidiu abdicar dos luxuosos aposentos papais no Palácio Apostólico. E as últimas homilias soam a indiretas para os que lhe desejam o pior. Na missa da segunda-feira, o Papa afirmou que  o «silêncio» e a «oração» são a melhor resposta para quem procura «o escândalo» e as divisões na Igreja Católica. «Que o senhor nos dê a graça de discernir quando temos de falar e quando nos devemos calar», disse aos presentes. Depois, acrescentou: «A verdade é mansa, a verdade é silenciosa, a verdade não faz barulho». Já «o pai da mentira, o acusador, o diabo, age para destruir a unidade da família, do povo». 

Na missa de quinta-feira, a homilia voltou a ser dura. Francisco destacou a importância da «penitência». «Um sinal de que uma pessoa, um cristão, não sabe acusar-se a si mesmo é quando se acostuma a acusar o próximo, a falar mal dos outros, a meter-se na vida alheia. É um mau sinal», apontou, antes de recomendar aos católicos que deixem de recorrer a «cosmética espiritual e confissões blá blá blá». 

Só que em nenhum momento o Papa se refere diretamente aos críticos. E o silêncio está a perturbar e a desconcertar os bispos e cardeais – a maioria americanos ou conservadores – que pedem a sua cabeça. Mesmo assim, o grupo parece apostado em  continuar a atormentar Francisco e, esta semana, o Sínodo da Família e as indicações do Papa sobre o eventual acesso à comunhão dos divorciados recasados voltaram a estar em discussão, trazidas à baila por Angelo Scola.

Na quinta-feira foi divulgada uma entrevista  do cardeal italiano – que, em 2013, chegou a ser apontado como possível Papa -, em que este reafirma que os católicos separados só devem poder comungar se viveram «em completa abstinência». E contrariar isso é «contradizer a natureza do casamento» à luz da Igreja Católica, que é para a vida toda. 

É preciso recuar a 2014 e 2015 para perceber o alcance e o timing das palavras de Scola. Nesse dois anos, Francisco convocou uma reunião em Roma com todos os bispos do mundo – um  Sínodo – para debater as novas formas de família e maneira como a Igreja poderia ajustar-se a elas. As conclusões do encontro mostraram uma Igreja profundamente dividida entre conservadores avessos a mudanças e progressistas  como o cardeal Walter Kasper – que chegou a propor, abertamente, que divorciados  recasados possam aceder à comunhão mesmo tendo sexo com um novo parceiro, desde que passem por um «processo penitencial» (para a Igreja Católica, ter um novo parceiro é pecado e, por isso, os recasados não podem comungar).

A seguir ao Sínodo, o Papa escreveu a encíclica Amoris Laetitia, com as orientações que deveriam ser seguidas nas dioceses de todo o mundo a seguir ao Sínodo. E não quis comprometer-se em demasia: a decisão de os divorciados comungarem caberá aos padres, que devem fazer uma análise «caso a caso». Os conservadores não ficaram satisfeitos com  o texto e, em 2016, um grupo de cardeais – entre eles o ultraconservador americano Raymond Burke – escreveram ao Papa, acusando-o de «lançar a confusão» na Igreja e pedindo-lhe respostas – «sim ou não» – a um conjunto de «dúvidas». O Papa preferiu ignorá-los e nunca lhes respondeu. 

Entretanto, e também esta quinta-feira, o cardeal Raymond Burke veio a público e decidiu, também ele, recuperar o tema, relembrando que que continua à espera das respostas de Francisco sobre os seus pontos de vista acerca do matrimónio. «Só tem de dizer sim ou não, não é assim tão complicado», afirmou. Na mesma conferência de imprensa, Burke aproveitou para garantir que não teve nada a ver com a divulgação da carta em que Francisco é acusado de encobrir os abusos sexuais do cardeal McCarrick, escrita pelo ex-núncio americano Carlos Maria Viganò (há quem especule que possa estar ligado ao caso, por ser conservador e crítico do Papa). «Fiquei profundamente abalado ao ler o texto. Como poderia sentir-me assim se tivesse alguma coisa a ver com isso?», assegurou. Mas deixou um recado a Francisco: é preciso que venha a público esclarecer as acusações de que é alvo na missiva do ex-núncio. 

Apesar das insistências e provocações, o Papa mantém-se na bolha de silêncio – ainda que, no domingo, dois padres do Vaticano, Federico Lombardi e Thomas Rosica, tenham escrito uma nota em que tentam mostrar como algumas das informações constantes na carta de Viganò são falsas.   Pelo meio, têm chegado ao Vaticano expressões de solidariedade para com o Papa, vindas de várias partes do mundo. E, neste capítulo, os bispos portugueses conseguiram fazer um figurão. 

Na segunda-feira, reunidos em Fátima no Simpósio Nacional do Clero, escreveram uma carta de apoio a Francisco. No documento, dizem-se solidários com o «sofrimento» do sumo pontífice, «perante tentativas de pôr em causa a credibilidade do seu ministério». «Empenhar-nos-emos em incrementar uma cultura de prevenção e proteção dos menores e vulneráveis em todas as nossas comunidades», lê-se na carta. Antes, no fim de semana passado, o cardeal-patriarca de Lisboa, habitualmente conotado como próximo da ala conservadora da Igreja,  já tinha escrito uma carta aos fiéis pedindo-lhes «comunhão profunda» com Francisco e elogiando-lhe a «coragem» e a «lucidez». 

O Vaticano gostou da manifestação de apoio e já fez chegar o devido agradecimento. O Secretário da Congregação para o Clero enalteceu a «fidelidade» dos bispos portugueses. «Hoje é Francisco, antes foi Bento XVI, antes dele João Paulo II… o Papa, que Deus escolheu como vigário de Cristo. Este apoio, este amor, este carinho, esta confiança na fé é um presente que Portugal oferece ao mundo e à Igreja universal», afirmou Jorge Wong em declarações à Ecclesia. 

Enquanto isso, a imprensa internacional desdobra-se em apostas, opiniões, entrevistas e textos sobre o que poderá acontecer a uma Igreja tão fragmentada. Poderão os inimigos do Papa obrigá-lo a resignar? O Direito Canónico até permite a resignação – tanto que  Bento XVI saiu em 2013 -, mas a lei é clara: a decisão tem de partir do próprio sumo pontífice. Mesmo assim, e por estes dias, nem a a interpretação dos cânones é consensual para o Clero. Raymond  De Souza, padre e canonista americano bastante mediático nos Estado Unidos, defendeu ontem que se as acusações de Viganò forem verdadeiras, Francisco poderá mesmo ter de abandonar o Papado, porque «não é digno do trono de Pedro». Contudo, avisou: uma eventual resignação seria «uma catástrofe para a unidade e a credibilidade da Igreja».