Adriano Carvalho: ‘Não há uma câmara de vigilância para a História’

Em Vazante, filme de Daniela Thomas que retrata a sociedade brasileira nos últimos anos do domínio português, Adriano Carvalho é António, um português como os milhares que chegavam a Minas Gerais com o sonho de fazer fortuna do ouro e dos diamantes. Homem, branco, colonizador, tropeiro. 

Adriano Carvalho: ‘Não há uma câmara de vigilância para a História’

Protagonista com tudo errado mas tudo certo para este retrato do pior de uma época. Onde se mata e onde se morre, onde se vê morrer e a vida continua. Interpretá-lo? Ver que o passado é connosco, que continua, que «somos hipócritas, somos  muito hipócritas». Como viram sempre os quilombolas, descendentes dos escravos que fugiram e sobreviveram para contar a história a partir das comunidades em que se organizaram, os quilombos. Ao lado de Joaquim – O Tiradentes, de Marcelo Gomes, Vazante gerou grande controvérsia no Brasil. Chega esta semana às salas portuguesas.

Com todo o debate que suscitou o suposto Museu das Descobertas que se quer fazer em Lisboa, parece-te que este filme que, estreado em Berlim já quase há dois anos, chega tarde mas ao mesmo tempo na altura certa, do ponto de vista do debate sobre o que foi o período colonial?

Acho que é um filme pertinente em qualquer altura. O Vazante como o Joaquim, dois filmes com olhares diferentes [sobre o período colonial], mas muito próximos. Um pegando num herói acidental que é o Joaquim, aquele oficial que de repente está no centro de uma das revoltas que dará origem à independência do Brasil, que já se previa, e que também aborda as questões de uma sociedade escravocrata e patriarcal. O filme da Daniela é um filme de cariz mais histórico, no sentido em que tenta fazer uma reprodução [do que foi essa época], com base numa história que o pai lhe contou de um avô que com 40 e tal anos se casou com uma miúda de 12. E aqui não é só a questão da sociedade patriarcal que existia e que é o ponto de partida. O filme tem essa capacidade de nos transportar – também exige um pouco do espectador e da sua concentração, não é um filme com dez mil planos e explosões, é um filme que pretende introduzir-nos nos ritmos da época. 

E que nos transporta para o Brasil do século XIX, pouco antes da independência, com o poder colonial já em total declínio.

E o que existia naquela época? Uma certa normalidade, uma banalização do mal, como diz a Hannah Arendt. A consciência que tens neste momento do certo e do errado, a posição a montante, passados 200 e tal anos, do que foi esta coisa imensa e terrível que foi a globalização do tráfico de escravos, e os portugueses são responsáveis por isso, de facto, por essa massa, esse movimento que transforma aquele continente todo. É triste mas é algo que à época era normal, que obedecia à estrutura económica presente. E não é muito diferente do que acontece hoje nas relações de trabalho. Aceitamos demasiadas coisas com normalidade. A nível pessoal, não aceitamos, temos consciência do terrível que isso é. Acredito que à época algumas pessoas também a tivessem, mas eram impotentes. E dentro desta coisa de cada um aceitar os seus papéis – de se aceitar que a mulher é submissa ao homem, de que se pode ter poder sobre outro homem que é visto como mula de carga – tens esta história. Como se alguém tivesse captado um retrato da época e congelado esse retrato do que se passava ali. É uma visão – limitadora, sempre, porque o filme não pretende ser um resgate de nada, não pretende isso, e acho que as polémicas…

Achas que as polémicas que surgiram à volta do filme – qual o ponto de vista, qual o ângulo, qual a forma certa de retratar o pior lado daquele tempo – vêm em parte desta dificuldade de que falas que é olharmos para o que se passou há 200 anos com um olhar que é o de hoje?

É sempre a partir de hoje, mas são feridas abertas. Estão abertas nas nossas sociedades, em especial na sociedade brasileira, onde a maioria da população é de origem africana e indígena, mas sobretudo africana. Aconselho todas as pessoas a verem os documentários do Museu de Arte de São Paulo e as conferências sobre a escravatura. Aprendi muito aí. Não tinha consciência da visão dos historiadores brasileiros, sumidades no assunto, que põem o dedo na ferida, com base científica. Ninguém quer ouvir essa versão também. 

Qual versão?

Estou a falar de todas as estruturas de poder no território brasileiro. É muito complexo falar sobre estes assuntos no Brasil. O filme provocou debate, e ainda bem. Não era [a polémica] o objetivo do filme, mas os filmes também não sabem o que vem do público que vão ter. Formou-se ali um debate à volta do filme e há várias opiniões – umas mais radicais, mais de militância, umas mais consensuais, outras mais críticas, outras que destacam o filme per se – mas pelo menos não provocou indiferença. Não provocar indiferença é bom. Como é que olhamos para um objeto, com que ponto de vista? Há imensos pontos de vista, há imensas coisas por fazer. Temos que começar por algum lado. 

O que me parece que a realizadora procurou, não sei se concordas, foi fazer um retrato daquele tempo como se acredita que era sem grandes intervenções. Sem julgar, de certa forma, numa quase ausência de ponto de vista, acredito que deixando essa parte para o espectador.

Os pontos de vista devem existir para provocar o debate. Mas a ausência deles também provoca esse debate. Ela procurou de facto basear-se na história emocional entre aqueles personagens, procurou ser [historicamente] fidedigna e fazer um laboratório, mesmo ao nível do casting. Tinhas quilombolas, descendentes diretos dos escravos fugidos em busca da sua liberdade, que arriscavam, que iam por aquelas selvas adentro e muitas vezes eram capturados e submetidos, assassinados, enfim, mas outras não. E juntaram-se e formaram comunidades. É importante dizer que eles eram de origens diferentes e que falavam línguas diferentes. 


FOTO: Mafalda Gomes

Falas nos atores?

Nos atores que fizeram figuração e que não são meros atores. São atores deles próprios, dos seus antepassados. Os antepassados deles foram esses escravos que fugiram e formaram essas comunidades. E eles quiseram fazer este filme. Aceitaram fazer parte desta história. Depois, ainda nessa lógica de laboratório, tens outros atores que não são brasileiros, são africanos. A Daniela não quis que fossem brasileiros de origem africana, porque o brasileiro de origem africana é brasileiro, ponto. 

Não está num lugar estranho como estavam os escravos que chegavam, traficados.

Não têm essa estranheza. Ainda bem que falas nessa questão do que se passou nestes dois anos [desde a estreia internacional de Vazante no Festival de Cinema de Berlim] e o que aconteceu aqui, e vais já perceber porquê. Eles eram de origens distintas. Do Mali, do Burkina Faso e de outros territórios, e falavam francês, mal falavam português. Para eles também foi estranho estar ali, mas também quiseram fazer. Tinham uma energia, um poder, uma carga… e fazem exatamente dos escravos que tinham acabado de chegar à fazenda do António. Uma coincidência é que eles são refugiados. Vieram de cenários de guerra, passaram pela Europa e através de um protocolo foram parar ao Brasil, a São Paulo. São refugiados acabados de chegar a uma terra que lhes é estranha e que também não escolheram. Refugiados reais. Antes de haver a discussão aqui na Europa sobre os refugiados – algo que existe há anos, que passou agora para a agenda política por causa das pressões nas fronteiras, e a questão não é com os refugiados de origem subsaariana, é com os que vieram da Síria. Só ficámos cientes na Europa do que acontece na ilha de Lampedusa quando veio a guerra na Síria. Mas ninguém se lembrou da quantidade de gente que morreu e que morre há anos no Mediterrâneo. Anos e anos de silêncio total da União Europeia e de toda a gente. Não era notícia. De repente é notícia porque é a Síria. O [ator] Toumany Kouyaté, que faz o líder dos escravos, o que chega e que se revolta e, sem querer criar um spoiler, acaba por morrer, é uma figura muito importante na sua comunidade porque passa através da oralidade as tradições dos seus antepassados. É um artista, mas mais do que um artista. E [no filme] fala na sua língua, que a Daniela optou, e foi muito criticada, por não traduzir. Disse-lhe ‘diz o que quiseres’, porque quis colocar o espectador nessa posição do estamos todos aqui sem perceber. O filme é todo construído assim. 

Porque era assim. 

Há muito essa questão da incomunicabilidade. Minas Gerais teve um êxodo brutal de portugueses quando apareceu o ouro e a ação do filme passa-se um ano antes da independência do Brasil, já no declínio total da exploração mineira e diamantífera. Tinha acabado. Cem anos e esgotou-se. Aí é que começa a introduzir-se o gado e o famoso queijo de Minas. Portugal só começou realmente a explorar o Brasil passados quase 200 anos da sua descoberta e Minas Gerais foi extremamente importante. O Reino quis dominar o território, criou a Via Real para dominar o circuito das minas e dos diamantes até à costa – havia fugas e roubos, era um território perigoso. E houve um êxodo brutal de portugueses para o Brasil nessa altura, porque a notícia espalhou-se a uma velocidade incrível. As pessoas iam para o Brasil fazer fortunas, e são milhares os que vão tentar a sua sorte, de vários sítios. Este António é um desses portugueses. 

É o protagonista do filme. Como o preparaste?

Fui preparando, em vários momentos. A dificuldade deste personagem é o pouco diálogo que tens. As pessoas falavam pouco. Diziam bom dia, boa tarde, quero comer, não havia vários discursos. As pessoas não falavam assim tanto, falavam o necessário. 

O que te leva a acreditar nisso?

Pelo que li da época, havia uma presença muito forte da Igreja – dizeres ‘diabo’ era uma ofensa terrível, por exemplo – e havia uma animalidade muito grande nestas zonas, era a lei da sobrevivência. E as pessoas aceitavam os seus papéis. Comecei por fazer uma coisa que foi não julgar o meu personagem, ou não o poderia fazer. Se emites uma opinião sobre o teu próprio personagem, se o tentas julgar de acordo com as convicções morais da era em que vives, já é uma intervenção que estás a fazer. A maior dificuldade é essa. Porque não és uma pessoa do século XIX, és uma pessoa do século XXI a emprestar o teu corpo, a tua voz e as tuas características àquele personagem. É muito difícil tentarmos imaginar, apesar dos dados históricos que recolhi e dos que me foram dados, como seria. Mas conseguimos chegar a alguns consensos a partir dos documentos que existem. Ao nível de características do personagem, tinha as várias camadas emocionais que tinham que aparecer e esse foi o trabalho mais complexo.

Ter que dizer tudo não dizendo nada?

Ter de criar todo esse estar e não estar para uma figura daquela época. Tudo. As relações amorosas, as relações económicas, o pensamento, a fisicalidade, a relação com a natureza que perdemos. Tenho a vantagem de ter tido uma infância próxima do meio rural.

Ou não terias conseguido andar descalço daquela maneira [risos]. 

Andar descalço foi uma preparação técnica. Logo que tive a notícia de que tinha sido escolhido para fazer o filme, depois de a Daniela ter feito uma pré-seleção de vários atores e ter vindo a Portugal fazer um teste – chamou-lhe teste porque não gosta de fazer castings por achar que o casting pode ser muito redutor e muito humilhante até nos moldes em que é praticado.

Prolongando o parêntesis, qual é a diferença entre um casting e um teste?

Num teste tens a liberdade de explorar o personagem consoante o que queres. Ela necessitou disso porque eu não tinha tantos filmes no meu currículo como alguns dos meus colegas, que são todos fantásticos. Mesmo. Mas o personagem era um homem duro e andava descalço. Andar descalço não era nada incomum, era uma banalidade. Havia, aliás, esporas para andar a cavalo com os pés descalços, portanto… Adquirir umas botas era muitas vezes sinal de estatuto, sinal de que tinhas progredido. Isso manteve-se também aqui, na nossa ruralidade, até há não muito tempo. O meu pai andou descalço, por exemplo. Mas então, assim que soube que a Daniela me tinha escolhido, a preparação começou por aí. Por andar descalço. Andei descalço por Lisboa, por vários outros sítios.

Em Lisboa, na rua?

Sim. Repara, num filme só tens um momento. Tens de estar todo naquele momento porque só tens uma oportunidade. Não tens segundo episódio do filme. Não tens, como no teatro, o espetáculo do dia seguinte. Todos podem, e devem, ser extremamente rigorosos, mas o cinema tem a característica de ficar registado para a eternidade. É para sempre. Só existiu um Vazante, aquele filme naquela época com aquelas condições. Para andar descalço, não podia [começar a] fazer isso 15 dias antes. A primeira pedrinha, o primeiro espinho que se espete no teu pé vai provocar uma alteração no teu olhar, em tudo, e aí já perdeste o personagem. Já não és, já não estás lá. Eu não ia poder ter 40 anos a andar descalço e a criar as gretas que eles criavam nos pés, porque o organismo cria proteções, mas podia trabalhar o máximo para chegar lá e poder andar a correr como andei pelas pedras e por todo o lado. E só apanhei dois bichos-de-pé, o que foi ótimo. 

Bicho-de-pé?

O bicho-de-pé é um bicho que perfura a pele, coloca os ovos. Houve pessoas da equipa que andavam calçadas e apanharam 12. Eu andava descalço e só apanhei dois. Há muito nas zonas rurais, onde há porcos e gado. Também tive que andar a cavalo, e não era equitação, era o mais raw, o mais cru possível, até na própria postura, incorreta. O António como tropeiro conduzia as tropas, não no sentido militar mas as tropas que levavam os negros, mantimentos, tudo. Chegavam a levar 25 toneladas no lombo dos animais por aqueles caminhos. Levavam três meses para chegar à costa e três meses para voltar. E é este o ritmo que o filme tem. Três meses para ir, três meses para voltar. E o sol, a chuva, os insetos, este tempo que está lá, com um trabalho magistral do Vasco Pimentel – tudo o que está no filme eu ouvi lá ao vivo – e outro trabalho magistral de fotografia do Inti Briones. E, claro, da Daniela e do Beto Amaral [produtor]. Voltando à minha preparação, há uma pesquisa histórica que fazes e que depois abandonas para te concentrares no que estás ali a trabalhar, porque os factos históricos não interessam àquelas pessoas. A vida é como é. Tento perceber como era a época, sim, fui aos registos que consegui obter da época, não só as abordagens da história analítica dos factos em si, mas também, por exemplo, o que se comia. Uma das coisas que fiz foi começar a produzir e a fazer comida da época.


FOTO: Mafalda Gomes

Que era o quê?

Aprendi a fazer feijão tropeiro, que agora é um ícone da gastronomia mineira e que tem a sua origem exatamente aí. Havia um cozinheiro que ia à frente montar o acampamento para quando eles chegassem estar a comida pronta. E o que é que levavam? Feijão, carne seca, toucinho, um bocado de farinha de mandioca e pouco mais. De verduras, uma couve selvagem, qualquer coisa que se apanhava pelo caminho. Portanto, tinhas hidratos, tinhas alguma proteína, mas eram refeições muito fracas a nível de vitaminas. E isso reflete-se também. Fiz essa alimentação durante algum tempo e ficas a perceber que te muda internamente. Tinha de sair da minha zona de conforto para poder estar imerso ali. Para, lá está, não estar a julgar o personagem pelo que é difícil aceitarmos hoje. Não podia julgar o facto de ser um homem de 40 anos a casar-se com uma rapariga de 12, que era comum. E é praticamente uma violação, se quiseres. Neste filme tens várias questões. 

A da miscigenação também, por exemplo, que tem muito que se lhe diga.

A miscigenação foi uma técnica para um objetivo político. A população era muito escassa, havia que popular, e isso fez-se com a conivência das autoridades também. Da Igreja, das autoridades civis e do Reino em si. Era necessário criar as chamadas almas para povoar o território, optou-se pela miscigenação. Vamos perfilhar alguns, porque filho de escrava que era varão não deixava de ser bastardo mas havia… Não quero estar a amolecer a questão, porque isto não foi uma coisa bonita. Foram violações. Pode ter havido um ou outro caso de amor, que houve, como em Diamantina, do negociante de diamantes que se casou com uma escrava, a Chica da Silva, e isso foi uma revolução na sociedade local.  Não fomos o único povo, mas fomos o mais efetivo a praticá-la. Os espanhóis também o fizeram, os ingleses, os franceses e os holandeses fizeram menos. Preferiram inventar uma coisa a que se chama apartheid. Pouca mistura. O Estado Novo foi quem criou essa linha da miscigenação dos portugueses bonzinhos que andaram aos beijinhos e aos abraços. Mentira. O Joaquim…

O Tiradentes do filme de Marcelo Gomes…

Foi esquartejado. Da maneira normal: pena de morte e depois cortado em quartos para meter a cabeça num lado, uma perna no outro, nas fronteiras administrativas para dizer ‘vejam o que acontece’. Para os escravos não se poderem suicidar havia máscaras, máscaras de ferro, para não poderem ingerir coisas. Havia uma quantidade de coisas atrozes. Era normal matar, era normal morrer. As pessoas morriam na rua, à tua frente. E nesta coisa do revisionismo e de ir apontar o dedo, temos que apontar o dedo a tudo. À humanidade inteira. Portugueses, ingleses, africanos. Parte destes refugiados africanos que fogem hoje são escravos. As feridas estão abertas e temos que falar delas. Se este filme contribuir para isso, ótimo. O cinema tem esta característica de te dar um objeto a partir do qual podes refletir. Não é impossível fazeres uma tese com um filme, mas é difícil teres um filme que consiga resgatar tudo. Este filme é a tentativa de fazer um frame de várias referências históricas e documentais para criar um momento do que imaginamos que poderia ser. Só isso. Porque é impossível, não há uma câmara de vigilância para a História a ver como se passou tudo ipsis verbis. Nem hoje temos. Temos fragmentos e construímos as coisas em função de fragmentos, de episódios. Claro que os filmes nos tocam. E este tocou na sociedade brasileira num ponto em que eles realmente ficaram ‘o que é isto?’. Mas também é curioso ver este filme acusado de falta de protagonismo dos personagens africanos e sobre o da Lucrecia Martel [Zama] em que tens uma africana que não fala em todo o filme, por acaso uma atriz brasileira, ninguém tenha comentado nada. É estranho. Como é que um provoca e o outro não provoca?

O filme vai ser visto de forma diferente em Portugal?

Não sei. Há várias formas de olhar, acho que o que é importante é olhar. As sociedades veem o que querem ver. Nos Estados Unidos, por exemplo, o filme foi recebido de outra maneira. Aqui há [a questão dos] dados históricos que foram sonegados. Provavelmente fala-se neles nos departamentos de História das faculdades mas no ensino secundário não e ainda pulula por aí essa teoria dos Descobrimentos portugueses como um grande feito. Que foram um grande feito em si. Realmente ir um barco a cair de podre para o outro lado com desvalidos é um grande feito. Não era fácil. A dificuldade é viajar no tempo para tentar perceber porque é que funcionava assim para não voltar a fazer a porcaria. E a porcaria é o que continuamos a fazer. Continuamos a ter questões de género, continuamos a escravizar política e economicamente o outro, socialmente, continuamos a fazer bullying, continuamos a fazer tudo. Não aprendemos. Nós, humanidade, porque o conceito de raça, como sabes, já foi extinto por aquele senhor italiano que morreu recentemente. E posso ir para exemplos políticos: a Suíça deu nos anos 80 o direito de voto à mulher. A Suíça, esse grande exemplo. Não vejo ninguém a apontar o dedo à Suíça por isso. Somos hipócritas. Somos totalmente hipócritas.

Em relação àquela ideia de laboratório de que falavas, como foi o trabalho com um elenco de atores e não atores de tantas origens?

Não sabíamos o que ia a acontecer. A Daniela é realizadora e historiadora de formação também, além de cenógrafa. Tem a estética e tem o conhecimento factual. Foi um laboratório porque ninguém sabia o que ia acontecer. Perguntei-lhe ‘mas em que língua é que eu falo’ [com o restante elenco] e ela disse-me ‘não sei’. Como é que se falava na altura? Ninguém sabe. Como era a comunicação? Havia uma enorme disparidade de sotaques, que mudavam de aldeia para aldeia, isso sabe-se. Havia essa questão da linguagem e ela disse ‘vamos fazer um laboratório, vamos ver’. Criou-se este laboratório de línguas, de nacionalidades e de experiências de vida, até na forma de abordar os personagens. Tinhas a Luana [Nastas], ainda não falei nela, que tinha 12 anos, e está absolutamente brilhante porque é conservada aquela ingenuidade dela. Ela nem conhecia bem o guião, foi-lhe escondido, de certa maneira, mas entregou-se àquilo de uma maneira que parecia que filmava desde sempre. A Sandra Coveloni, uma atriz de outro universo, que fez um trabalho brilhante com os quilombolas. Na preparação e no tratamento humano que teve com eles. 


FOTO: Mafalda Gomes

Os quilombolas que fazem de escravos. Um exercício certamente duríssimo para eles, esse de interpretarem os seus antepassados. E para ti também? Tu português, naquele personagem? 

Não é só a questão de ser português. Obviamente que há momentos de convivência na rodagem e eu vinha com o figurino de António, com aquela barba, e lembro-me de estar a falar com o Sr. Zé, ‘então, Sr. Zé, está bom?’, e de ele baixar os olhos. Isso fez-me muita impressão. Na pele daquelas pessoas maravilhosas e com histórias humanas incríveis está uma herança tão pesada de submissão, de escravatura, de humilhação… que instintivamente ele baixava os olhos. Eles não tinham o brilho nos olhos que tinham os refugiados do Burkina Faso e do Mali, que olhavam para ti olhos nos olhos e com um sorriso aberto. 

A questão da escravatura para eles [quilombolas] não é uma teoria, é uma questão presente. Não é um partido político, é a realidade, que para eles não mudou. Continuam a ser olhados como classe baixa, continuam pobres. Lembro-me, por exemplo, de no catering a fruta ser a primeira coisa a desaparecer. O que as crianças levavam era a fruta, só um é que ia aos doces.

Por toda essa experiência, por toda a dificuldade, por toda a preparação, foi o personagem que mais gostaste de fazer até hoje?

É muito raro teres experiências destas. Na vida, mas sobretudo no cinema. Ires à procura de um determinado rigor histórico e da maior sinceridade e transparência possível naquilo a que o Bresson chamava ‘non acting’. Chegares a esse ponto como personagem, entrares nas rotinas, nessas coisas todas. Depois o filme tem várias características técnicas muito específicas: a luz é toda natural, não há um único projetor elétrico em todo o filme, os figurinos foram, depois de uma pesquisa de meses, todos cosidos à mão e tingidos na lenha. Houve essa questão do encontro entre portugueses, africanos, brasileiros, desse laboratório. E tens coisas que são vantagens como estares naquela localização, naquele set. Aquela fazenda era de 1753, dois anos antes do terramoto de Lisboa, e ainda lá está, com as mesmas janelas e os mesmos troncos de madeira. E é uma antiga fazenda escravocrata. Contavam-se histórias incríveis dos fantasmas que às vezes apareciam por lá. Nunca me aconteceu, não sei [risos]. Ou a história de uma revolta que houve lá de escravos contra um padre que os castigava, que lhes batia. Revoltaram-se e mataram-no.

Mataram-no naquele lugar?

Sim, ali perto da fazenda. E depois continuaram escravos. Entendes isto? Se quiseres é o fado português, o dizer-se ‘ah, é o destino, é assim’. Por que é que as pessoas não se revoltam? Se são mais, por que é que não tomam o poder? Porque as revoluções são todas e somente feitas pelas elites. Mas, não desviando, o filme foi uma experiência humana épica, muito forte. Ao nível de trabalho artístico, um desafio gigantesco para aquilo que acredito que deve ser o cinema. Há poucos trabalhos que fazemos e que sentimos ‘ok, consegui emprestar um pouco daquilo que acredito que deve ser o trabalho do ator’. O despojamento e a entrega, só isso. Servires o teu personagem, não servires o teu ego. O ator é isso: um auxiliador de contador de histórias. E o importante é veres aquilo que está lá, aquela normalidade do que acontece na vida e pronto. Não os efeitos especiais e ‘olhem que bem que vou aqui’. Nem sempre conseguimos ter a felicidade de fazer ou estar em filmes como este e eu tive com neste projeto. Temos aqui atores e atrizes brilhantes que não tiveram ainda esta possibilidade, a quem ainda não aconteceu. Aqui, em Portugal, jamais poderia fazer o Vazante na época em que aconteceu. As pessoas até podem gostar de mim e do meu trabalho, mas jamais seria considerado para um protagonista.

Estás a dizer que achas que só aconteceu por ser um filme fora?

Aconteceu porque a realizadora estava à procura de um ator com determinadas características e porque se gerou essa empatia. Porque tinha que acontecer, se calhar, mas porque ela não trazia preconceitos. Isto há em todo o lado, mas nós temos muito esta tendência de… Tive muito isso no teatro, sabes? Uma pessoa que sofreu esse preconceito e que agora está a sofrer ao contrário, e ainda bem, é o José Raposo. Um ator brilhante mas que é brilhante há anos e durante anos foi visto como o gajo que fazia revista e macacadas na televisão. Até ao dia em que começou a ser visto como ator. 

Concordas com algumas críticas que dizem que o ponto de vista é o do homem branco opressor?

É uma interpretação. Há quem não ache nada disso. Às vezes olhamos as coisas de uma perspetiva de compartimentação e acho que essa interpretação foi feita de uma perspetiva de grande militância nesta ótica de que há feridas abertas e um debate muito aceso e as coisas são necessariamente empoladas por uma visão mais emotiva. O mesmo assunto visto por espetros políticos extremos vai ser sempre puxado para cada um dos lados e colocado na agenda política de intervenção de acordo com aquilo que considera ser mais opressivo para si. É perfeitamente possível essa leitura, mas não digo que seja isso o filme. Mas há tantas críticas, tantas visões… Sei lá, da Casa-Grande & Senzala do Gilberto Freye o que o Estado Novo extraiu foi a única parte em que os portugueses eram uns porreiros bonzinhos para concluir que então aquilo até era fixe e que os portugueses fizeram uma colonização diferente. Claro que fizeram uma colonização diferente. Foi boa? Não.