Terramoto ou falso alarme?

Uns chamam-lhe ‘uma bomba’, outros ‘um embuste’. O novo livro de Bob Woodward sobre Trump diz que a Casa Branca é uma espécie de manicómio. ‘Fear’ está a suscitar reações extremadas e a bater recordes de vendas.

Terramoto  ou falso alarme?

Vale mais ser temido ou amado?», questionava Nicolau Maquiavel n’O Príncipe, o grande manual da liderança do século XVI. Face à dificuldade de «ser as duas coisas», continuava o filósofo, mais vale um líder ser temido do que amado. «O temor implica o medo de uma punição, que nunca mais se extingue», concluía Maquiavel.

E talvez não resulte de um acaso ser esse o sentimento que a presidência de Donald Trump desperta entre muitos eleitores americanos. «O verdadeiro poder é – nem sequer quero usar a palavra – medo», terá dito Trump a Bob Woodward numa entrevista. O repórter usou a frase para cunhar o título do seu livro lançado esta terça-feira: Fear – Trump in the White House (ed. Simon & Schuster).

«O livro de Woodward é uma bomba», diz ao SOL a jornalista norte-americana Kate Brower, que durante quatro anos cobriu a Casa Branca para a Bloomberg e é autora de três livros sobre a residência oficial dos presidentes dos Estados Unidos. «Embora reitere coisas que já sabíamos – que esta Casa Branca é caótica e que Trump é um Presidente como nunca houve outro na história americana -, foi escrito por um jornalista com tanto prestígio que os episódios relatados são tomados como factos».

Um desses episódios surge descrito logo no início do livro, que será publicado em Portugal pela D. Quixote, em novembro:

«Apesar dos relatos quase diários de caos e discórdia na Casa Branca, as pessoas não sabiam até que ponto a situação interna era má. Trump era errático, estava sempre a mudar, raramente estabilizava. Se estivesse de mau humor, qualquer coisa grande ou pequena o enfurecia, e dizia sobre o acordo de comércio KORUS [entre os EUA e a Coreia]: ‘Vamos sair hoje mesmo’.

Mas agora havia a carta, datada de 5 de setembro de 2017, um potencial rastilho de uma catástrofe para a segurança nacional. Cohn [o principal conselheiro de Trump para assuntos económicos] temia que Trump a assinasse se a visse».

O que se segue não é apenas digno de espanto – é também profundamente humilhante para o homem mais poderoso do mundo.

«Cohn tirou o rascunho da carta da secretária Resolute [que deve o seu nome ao facto de ser feita com madeira de carvalho do navio britânico Resolute, oferecido pela Rainha Vitória em 1880]. Colocou-o numa pasta que dizia ‘MANTER’.

‘Eu roubei-a da secretária’ disse mais tarde a um colega. ‘Não o ia deixar vê-lo. Ele nunca vai ver esse documento. Temos de proteger o país’.

Na anarquia e desordem da Casa Branca, e da mente de Trump, o Presidente nunca deu pelo desaparecimento da carta».

 

A resistência silenciosa

Dias antes do lançamento de Fear, um artigo no New York Times de um elemento sénior da Casa Branca que preferiu manter-se anónimo havia dado conta de algo semelhante: uma corrente na Administração que, se não estava a minar as decisões de Trump, pelo menos oferecia-lhe uma resistência silenciosa. «O comportamento errático [de Trump] seria mais preocupante se não fossem os heróis desconhecidos dentro e à volta da Casa Branca. […] Em privado, eles têm-se esforçado arduamente para manter as más decisões dentro das paredes da Ala Oeste, embora claramente nem sempre tenham sido bem sucedidos». Dizia ainda o autor: «Os Americanos devem saber que há adultos na sala».

Trump não demorou a reagir: «Estamos a drenar o pântano e o pântano está a ripostar», escreveu no Twitter.

«A grande resistência a Trump vem dos próximos, do establishment republicano, não dos democratas», nota João Lemos Esteves, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e comentador que tem acompanhado de perto a política americana. Para Lemos Esteves, o livro de Woodward «é mais do mesmo» e por isso não abala o poder em Washington.

Também Donald Trump o comentou em termos pejorativos. Mais uma vez através do Twitter, declarou: «O livro é um embuste. Eu não falo da forma como sou citado. Se falasse não teria sido eleito Presidente. Estas citações foram inventadas». Noutra ocasião referiu-se-lhe como «uma anedota» e chamou «mentiroso» ao autor. «Muitos [como os generais Mattys e Kelly] já vieram dizer que as citações deles, como o livro, são ficção. Os democratas não suportam perder. Eu vou escrever o verdadeiro livro!», ameaçou. Segundo Woodward, Kelly ter-se-ia referido a Trump como alguém «desequilibrado».

Com muitas tiradas inconvenientes, episódios embaraçosos e muito vernáculo, Fear dá uma imagem negativa de Trump e dos que o rodeiam: um Presidente impulsivo e mal preparado disposto a tomar decisões em cima do joelho e sem medir minimamente as consequências. Segundo Woodward, num encontro ainda antes da campanha, o estratega Steve Bannon comparou-o a Archie Bunker, o personagem da comédia dos anos 70 Tudo em Família; já Reince Proebus, antigo chefe de gabinete do Presidente, ter-se-á referido ao quarto de dormir onde Trump escreve os seus tweets como «a oficina do diabo». Por essas e por outras, o Presidente reagiu: «O autor usa todos os truques no livro para rebaixar e amesquinhar».

 

A varinha e o feiticeiro

Face às suspeições lançadas acerca do seu rigor, Woodward já admitiu que se for muito pressionado pode revelar as centenas de horas de gravações que recolheu. «Bom, se alguém me quiser mesmo desafiar, com certeza. Mas eu fiz acordos com as pessoas de que estas fontes vão permanecer confidenciais».

Embora a edição de capa dura custe 30 dólares, Fear vendeu qualquer coisa como 750 mil exemplares só no primeiro dia, superando largamente outros livros sobre a Presidência de Trump, como Lealdade a Toda a Prova, do ex-chefe do FBI James Comey (600 mil exemplares na primeira semana, ed. portuguesa Presença), Fogo e Fúria, de Michael Wolff (ed. Actual) ou Unhinged: An Insider’s Account of the Trump White House, de Omarosa Manigault, antiga conselheira de Trump, que o acusou de racismo.

João Lemos Esteves chama no entanto a atenção para o facto de haver «mais livros pró-Trump do que anti-Trump» nos EUA, «mas só estes chegam à Europa». E  considera que o timing destes lançamentos não é inocente: «Vêm numa lógica de fragilizar Trump tendo em vista as eleições intercalares». E fragilizam? No entender do comentador e professor de Direito não. «O sentimento de caos ou de desorganização de que fala o livro de Woodward não se traduz em indefinição relativamente ao que tem de ser feito. Trump consegue resultados. Basta ver a economia, a política externa e até a segurança. Se é assim com caos, imagine o que seria sem ele». De facto, a economia americana está a crescer 4,2% – algo que Obama questionava com ceticismo durante a campanha: «O Presidente Trump precisaria de uma varinha mágica para conseguir um crescimento de 4%», disse em 2016. Trump já respondeu com ironia: «A questão não é a varinha, é o feiticeiro».

 

Quem é Bob Woodward?

Jornalista de investigação de 75 anos, Woodward ganhou protagonismo em 1972, quando foi, com Carl Bernstein, um dos dois jovens repórteres do Washington Post que revelaram o escândalo de Watergate, que envolveu a colocação de escutas ilegais com o conhecimento de Richard Nixon. Na sequência da investigação, Nixon viu-se obrigado a renunciar à Presidência e o Post recebeu um Pulitzer pelo serviço público prestado. O caso deu origem a um filme de Alan J. Pakula, Os Homens do Presidente (1976), inspirado no livro homónimo, em que Woodward era interpretado por Robert Redford e Bernstein por Dustin Hoffman.

Depois disso escreveu vários bestsellers sobre sucessivas Administrações (Bush pai, Clinton, George W. Bush, Obama), incluindo Obama’s Wars, de 2010, em que criticava asperamente a política externa do anterior Presidente.