A competição fiscal ameaça a democracia

Felizmente, uma ação política rápida e coordenada, conduzida pelo G20, evitou com sucesso o início de uma recessão global mais profunda e prolongada. Nos dez anos desde 2008, os reguladores recuperaram algum terreno

Há dez anos, o sistema financeiro global foi abalado pela maior crise desde a Grande Depressão. Em 15 de setembro de 2008, o banco de investimentos norte-americano Lehman Brothers entrou com pedido de concordata depois que seu portefólio de crédito imobiliário finalmente desmoronou sob o peso da falta de cumprimento generalizado das hipotecas. Este colapso foi o resultado quase inevitável de décadas de regulamentação financeira negligente. Centenas de milhares de pessoas perderam seus empregos, suas casas e suas fontes de rendimento. A perda de produção nas economias avançadas nos anos seguintes foi o equivalente a apagar a economia alemã do mapa.  

Felizmente, uma ação política rápida e coordenada, conduzida pelo G20, evitou com sucesso o início de uma recessão global mais profunda e prolongada. Nos dez anos desde 2008, os reguladores recuperaram algum terreno. Lembrando que a crise deixou cicatrizes profundas em termos de produção e emprego, tentaram reconstruir uma arquitetura financeira global mais robusta.

Esta vitória, porém, não foi suficiente para proteger a economia mundial. Paralelamente, a maioria dos países entrou numa corrida para baixar os impostos empresariais, com o objetivo de atrair as multinacionais.

 

As tendências são preocupantes, ameaçando com consequências tão duradouras quanto as da crise financeira. No fim de 2017, Donald Trump reduziu as percentagens de impostos empresariais dos EUA de 35% para 21%, gerando recompras recordes de ações e prémios aos CEO em detrimento do crescimento salarial para o resto da força laboral. O Reino Unido está pronto para continuar com sua redução de 1 ponto percentual por ano na taxa de impostos empresariais, apesar de já ter a menor taxa do G7. O Canadá, que reduziu as taxas empresariais a um ritmo semelhante entre 2000 e 2011, está sob pressão renovada para as reduzir ainda mais. Na Colômbia, o novo presidente quer seguir na mesma direção, como já fez Mauricio Macri na Argentina em 2017.

Como um grupo de líderes de Governos, académicos e sociedade civil, a Independent Commission for the Reform of International Taxation (ICRICT), da qual sou membro, está convencida de que acabar com esta corrida é uma questão de urgência global. O imposto não é apenas o preço que pagamos por uma sociedade civilizada, a contrapartida cobrada ao setor privado pela provisão de infraestruturas e uma mão-de-obra de qualidade. O imposto é também uma válvula de segurança essencial que permite aos Governos democráticos restringir o poder dos leviatãs empresariais não eleitos – alguns dos quais possuem um património líquido maior do que o PIB de algumas economias do G20.

O movimento global para diminuir os impostos empresariais não tira apenas os recursos aos Governos, mas também uma das ferramentas políticas mais poderosas para reduzir a desigualdade e promover a redistribuição de rendimento. O economista Gabriel Zucman – também membro do ICRICT – mostrou recentemente com outros colegas que 40% dos lucros das multinacionais, ou  600 mil milhões de dólares, são transferidos anualmente para paraísos fiscais. Para as economias avançadas, a recuperação da sua base tributária dos paraísos fiscais pode ser mais difícil, onerosa e demorada do que simplesmente reduzir as principais taxas, mas é essencial.

 

O pacote de reformas do sistema tributário global conhecido como Projeto de Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros, que foi lançado há três anos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e o G20, é um passo na direção certa, mas está longe de ser suficiente.

Para a ICRICT, a abordagem mais promissora consiste em mudar a forma como os lucros tributáveis são calculados em todos os países. Concretamente, propomos redistribuir os lucros globais das empresas – e os impostos associados entre Estados – usando um sistema de rateio baseado em fatores como vendas, emprego e recursos usados pela empresa em cada país. Esta reforma global teria um impacto considerável em prol da justiça fiscal.

Sem respostas globais como essas, as economias podem vacilar e as democracias podem fracassar. Uma sociedade que permite que multimilionários e multinacionais detenham 10% do PIB global em paraísos fiscais alimenta o tipo de reação populista que permite o florescimento do autoritarismo. Ao tentar atrair as multinacionais com impostos cada vez mais baixos, os Governos fogem das suas responsabilidades democráticas e mergulham de cabeça na próxima crise global.

 

* Wayne Swan foi ministro das Finanças e vice-primeiro-ministro da Austrália. É membro da Independent Commission for the Reform of International Corporate Taxation (ICRICT).