Sede simples como as pombas

D. Manuel Clemente é uma personalidade que reúne duas importantes vertentes humanas: um saber profundo aliado a uma enorme simplicidade

Em finais de 1971, estava eu no então 6.º ano do liceu, em Setúbal, quando foi organizada uma visita de estudo à Assembleia Nacional (hoje Assembleia da República) para estudantes dos últimos anos e respetivos professores. 

A dada altura, um dos docentes que nos acompanhava chamou-me à parte e convidou-me a entregar uma pequena lembrança a ‘alguém’, em nome dos alunos e professores do nosso liceu. 

Na ingenuidade própria de um adolescente, perguntei logo para quem era a prenda. Ao fim de algum tempo de ‘preparação’, o dr. Antero Torres (parece que o estou a ouvir) revelou então o seu destinatário: «Há uma hipótese de vir o senhor Presidente do Conselho». 

Sem estar à espera de tal encontro, devo ter revelado algum receio e nervosismo, ao que ele respondeu: «Não te esqueças do que te vou dizer: ‘As pessoas, quanto mais alto é o cargo que ocupam, mais simples se tornam’». 

As suas palavras produziram em mim o efeito pretendido. E quando chegou o momento mais esperado, vi-me frente a frente com o Prof. Marcello Caetano, a quem entreguei a lembrança; e a breve troca de palavras que se seguiu veio confirmar o que me tinha sido dito pouco antes. 

 

Naquela época não havia a proximidade com os políticos que há nos nossos dias. Os tempos eram outros, mas o dever da simplicidade passou a acompanhar-me a partir de então.

Muitos anos mais tarde, num encontro com D. António Marto, fiquei a saber que o seu pai, ao tomar conhecimento da opção de vida do filho, lhe terá recomendado: «Nunca deixes de ser simples». 

E com essa sua simplicidade chegou onde chegou, e hoje é um dos mais recentes cardeais de que tanto nos orgulhamos. Apesar de já o ter feito em privado, felicito-o agora publicamente com a minha estima e admiração.

Quem não conhece o famoso poema ‘Se’, de Kipling, onde – entre tantos conselhos que desfilam naquela impressionante transmissão de valores – lá vem também a referência à simplicidade: «(…) Se por privares com reis não deixareis de ser simples…».

 

No meu ramo profissional, a simplicidade é essencial, direi mesmo obrigatória, pois a linguagem que usamos com os doentes deve ser clara, mas, acima de tudo, simples. 

Vários estudos provam que um dos principais problemas sentidos pelos doentes é não entenderem bem os médicos, pela complexidade da linguagem utilizada. Quantos doentes não há que, após uma consulta de especialidade, voltam de novo ao seu médico assistente pedindo ajuda para poderem seguir corretamente as recomendações do colega?

Esta falha, cometida vezes sem conta, deve merecer a atenção, em especial, dos mais novos, pois casos destes vão surgir-lhes frequentemente. Deixo, pois, aqui o meu alerta. Estejam atentos. Expliquem tudo aos doentes até eles perceberem, demore o tempo que demorar. Eles merecem isso de nós.

 

Ao abordar este tema, apraz-me citar uma personalidade que, em minha opinião, reúne as duas vertentes: um saber profundo aliado a uma enorme simplicidade, por todos reconhecida: D. Manuel Clemente. 

Sempre atento aos problemas da sociedade e do mundo mas ao mesmo tempo sem deixar de ser simples e próximo dos outros seus irmãos, o nosso Patriarca é genuinamente aquilo que o Pai nos pede e nos é revelado por Mateus: «Sede simples como as pombas, mas prudente como a serpente. MT 10,16».

Pegando nas suas palavras: «O grande projeto que nós todos temos como sociedade é o da vida e sua dignificação em todo o arco existencial». «Mais do que nunca, a Medicina deve retomar-se como ciência humana…». «E em cada pequena vitória de humanismo autêntico, abrir-se-á um futuro capaz».

Revejo-me, senhor D. Manuel, na sua posição. Por considerá-la útil e oportuna, venho hoje partilhá-la. Oxalá esta mensagem de esperança, simples e esclarecedora, nos interpele e contribua para dar um sentido novo às nossas vidas. Pensemos nela e no apelo feito a cada um de nós: «Sede simples como as pombas…».