Niall Ferguson. ‘Longe da linha de combate, a vida burguesa prosseguia com toda a naturalidade’

Nas vésperas do centenário do Armistício, que se celebra a 11 de novembro próximo, o SOL entrevista o popular historiador escocês, que desfaz alguns mitos acerca do primeiro conflito à escala global.

Quando foi publicado pela primeira vez em 1998, O Horror da Guerra, 1914-1918 gerou uma enormecontrovérsia. Nas suas páginas, Niall Ferguson contestava teses comummente aceites, nomeadamente que a Alemanha tivesse uma postura belicista, o que a muitos pareceu inaceitável. Em sentido inverso, historiadores tão respeitados como Ian Kershaw, o biógrafo de Hitler, ou Andrew Roberts, autor de uma obra fundamental sobre Napoleão, não pouparam nos elogios. Kershaw considerou o livro «a análise mais estimulante e provocadora da Primeira Guerra Mundial».

Nascido na Escócia em 1964 e licenciado em Oxford, Ferguson possui uma brilhante carreira académica, tendo dado aulas em Harvard, Cambridge, Stanford e na London School of Economics. Além dos seus livros, é conhecido do grande público como autor de documentários para televisão. Mantém ainda uma presença assídua no espaço mediático, defendendo posições conservadoras – foi, por exemplo, conselheiro de John McCain em 2008 – e não se esquiva ao debate político. Ao Guardian declarou: «[As pessoas de esquerda] adoram ser provocadas por mim!». Por causa das suas convições, há quem o considere reacionário e até já lhe chamaram «imperialista desprezível».

O Horror da Guerra, 1914-1918 foi recentemente publicado em Portugal pela Temas & Debates.

Um antigo embaixador português disse-me uma vez que a alternativa à diplomacia é a guerra – e que é por isso que a diplomacia é tão importante. Podemos inferir daí que a Grande Guerra foi o resultado de má diplomacia (ou o falhanço desta)?

Penso que sim. N’O Horror da Guerra tento mostrar como os líderes de cada uma das grandes potências fez cálculos errados que, no seu conjunto, conduziram a Europa e o mundo para uma guerra catastrófica que se revelou muito difícil de parar. Tanto os civis como os militares tenderam a exagerar os riscos para o seu país de não tomar uma ação militar, e de avaliar por baixo os riscos de o fazer. Os russos, por exemplo, estavam extraordinariamente confiantes de que podiam sustentar um conflito, menos de dez anos depois de terem sido derrotados pelo Japão e de passarem por uma revolução de grande escala. Os austríacos deviam estar muito mais preocupados com as fraquezas do seu império multinacional. Os alemães também subestimaram a sua vulnerabilidade tanto a nível financeiro como naval caso houvesse uma intervenção britânica. E os britânicos cometeram o maior erro de todos.

Porquê?

Porque estavam muito menos comprometidos com a intervenção do que todos os outros e podiam simplesmente ter ficado de fora. Se o tivessem feito, quase de certeza que a guerra no continente teria sido mais curta.

Antes do conflito, as classes médias na Europa central viviam com um conforto e requinte nunca antes vistos. Parecia que a civilização tinha atingido o seu apogeu. Mas o advento da guerra, com o seu cortejo de horrores, rapidamente desmentiu essa crença. Esse requinte das classes médias era um mero verniz que estalou facilmente?

Penso que um viajante no tempo teria ficado muito impressionado com a normalidade da vida burguesa longe das linhas de combate. As pessoas esforçavam-se muito por manter as aparências, mesmo quando tinham de fazer poupanças. Não me parece, por isso, que a cultura da classe média fosse um mero verniz. Na realidade, foi extraordinariamente duradoura e nos países do Ocidente foi rapidamente reposta a seguir à guerra. A única exceção foi a Rússia, claro, onde a burguesia, a par da sua cultura, estava destinada a ser destruída pelos bolcheviques.

Uma vez que as cartas dos soldados eram censuradas, as suas famílias tinham noção da vida de sacrifício e de privações que levavam na Frente?

Muito poucos dos que não viveram a experiência dos campos de batalha em primeira mão podiam conceber o poder de destruição da artilharia que estava a ser usada. No entanto, milhões de homens passaram por isso e era inconcebível que, ao regressarem a casa de licença, não dissessem nada sobre as condições por que tinham passado, independentemente do que escreviam nas suas cartas. As pessoas tinham consciência de que a propaganda oficial encobria as realidades: as evidências de baixas maciças, bem como as mutilações dos feridos com gravidade, dificilmente podiam ser censuradas. A insatisfação crescente com as condições – e o ceticismo acerca da adequação da estratégia dos seus comandantes – levou a motins nos exércitos russo e francês e, mais tarde, também nos exércitos austríaco e alemão. Não deve ser esquecido que, no final da guerra, os soldados alemães estavam a ser mais bem alimentados do que os civis.

Qual era o equipamento que cada soldado levava consigo para as trincheiras? Havia diferenças de monta entre o que um alemão e um russo, por exemplo, carregavam?

As diferenças eram relativamente insignificantes, embora o soldado comum alemão provavelmente tivesse um equipamento ligeiramente melhor do que a média e um russo tivesse um equipamento ligeiramente pior. Todos os exércitos se adaptaram às novas condições da guerra industrializada, alterando os uniformes (os regimentos escoceses deixaram de usar kilts, por exemplo) e melhorando o armamento (as granadas de mão tornaram-se mais fiáveis).

É verdade que esta guerra usou armamento do século XX mas a medicina era quase medieval? Ouvi dizer, uma vez, que na altura ‘o único remédio era cortar’.

Não é verdade. Houve importantes avanços em diferentes áreas da medicina, da cirurgia à psicologia, e, comparando com guerras anteriores, a proporção de soldados que morreram de doença quando estavam no campo de combate foi muito mais baixa. Devemos recordar que a medicina fez avanços importantes nos trinta anos que antecederam a guerra, como descrevo no meu livro Civilização – O Ocidente e os Outros [ed. Civilização].

Este foi o primeiro conflito em que a aviação foi usada em grande escala. A guerra trouxe consigo avanços tecnológicos relevantes?

Sim, embora esses avanços fossem substancialmente menores do que na Segunda Guerra Mundial, que acabou por produzir a bomba atómica. Os grandes progressos da Primeira Guerra foram melhorias muito significativas nos submarinos pela Alemanha, e o desenvolvimento de tanques pela Grã-Bretanha. Quanto ao resto, foi apenas uma questão de fazer artilharia maior e com mais capacidade de destruição, metralhadoras mais fiáveis e explosivos mais eficientes.

Tanto quanto sabemos, foram cometidas atrocidades de parte a parte. Pode-se dizer que a barbárie desencadeou mais barbárie?

Sim: os combates depois do Armistício de 11 de novembro de 1918 foram especialmente feios na Europa de Leste e através do Império Russo à medida que vastas áreas da Eurásia caíram na guerra civil. Mais tarde, quando os regimes fascistas chegaram ao poder, uma geração mais nova pareceu desejosa de replicar as experiências de 1914-1918, apesar de todos os horrores que os seus pais e tios tinham suportado. Este é um dos mistérios da década de 1930 – por que tantos jovens nascidos antes, durante ou depois da guerra estavam tão ansiosos para se meterem em uniformes e tornarem-se soldados. 

O historiador sueco Peter Englund tem um livro chamado A Beleza e a Dor da Guerra [ed. Bertrand]. Além do horror que menciona frequentemente no seu livro também se podia encontrar beleza no campo de batalha?

Os ‘poetas da guerra’ ingleses são interessantes a esse respeito. Aqueles que lemos hoje, Wilfred Owen, por exemplo – escreveu sobretudo acerca do horror da guerra. Mas houve outros (provavelmente a maioria dos soldados que escreveram poesia durante a guerra) que continuaram fiéis às convenções de que a poesia deve aludir à beleza. Claro que nem todas as batalhas aconteceram nas trincheiras lamacentas da Flandres. Esquecemo-nos facilmente de que foram travadas batalhas relativamente móveis nas planícies da Europa de Leste e na região dos Alpes entre a Áustria e a Itália, para não falar dos campos de batalha de Galipoli, Grécia, Iraque… Houve quem combatesse em cenários de grande beleza.

Winston Churchill escreveu qualquer coisa como: ‘Adoro esta guerra. Sei que está a esmagar e a destruir milhares de vidas neste preciso momento, mas não consigo evitar: adoro cada segundo’. Hitler também disse que este foi o período mais feliz da sua vida. Havia soldados que gostavam efetivamente de estar na guerra?

Sim, como mostro no meu livro. Havia uma minoria de homens que achava os combates emocionantes. E uma maioria de homens que encontrou na camaradagem da vida de armas algo que os preencheu. Apesar das agruras que tinham de suportar, frequentemente recordavam com carinho as amizades intensas que tinham forjado. Quanto a Hitler e Churchill, é preciso ter em conta que tiveram experiências muito diferentes! Enquanto Churchill começou como primeiro lorde do Almirantado, Hitler era um voluntário no exército bávaro.

O seu livro foi publicado pela primeira vez em 1998, numa altura em que ainda estavam vivos os últimos veteranos da Primeira Guerra. Chegou a falar com alguns?

Nessa época já só havia uns poucos homens muito, muito velhos que se lembravam da experiência. Decidi não gastar tempo com entrevistas porque, mesmo na melhor das hipóteses, não são as fontes mais fiáveis para um historiador. Os diários dos soldados, as cartas e os álbuns de fotografias, feitos na época, são de longe mais fiáveis.

Há quem diga que as pessoas que estiveram na guerra não gostam de discutir esse período das suas vidas com pessoas que não estiveram lá porque acham que os outros nunca perceberão aquilo por que eles passaram. Também tem essa ideia?

O meu avô combateu na Frente Ocidental. Ele nunca falou sobre isso com o filho, o meu pai, nem comigo. Mas penso que nem todos os veteranos eram assim tão taciturnos. E se tantos soldados escreveram as suas memórias depois da guerra foi, penso eu, por acreditarem sinceramente que podiam comunicar pelo menos parte da sua experiência àqueles que não tinham combatido.