João Abel Manta. Em desafio à nossa suave inconsciência

Inaugura hoje, na Galeria Valbom, Manta – 90/40, uma exposição que assinala os 90 anos de João Abel Manta e os 40 anos da publicação da sua obra-prima, Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar

Noventa voltas em torno do sol, um décimo da História deste país – e não, certamente, o mais pacato –, com Primaveras ou sem elas, ainda aí está João Abel Manta, vivo. E com tanto artista para voltar a esquissar o encolher de ombros, e não dar por nada, o risco que correm os outros é o de se engalfinharem a tal ponto que o tempo nesta terra se torne um castigo de todo o tamanho. Mas a diferença deste artista singularíssimo na pluralidade da sua intervenção não começa nem acaba na longevidade. Não se lhe contam entre os dotes o talento para ‘aguentar’, ir indo pelo carreiro da lusa mansidão. Foi antes um notável antagonista de quantos, estando-se nas tintas, aproveitam e pintam, fazem uns desenhos, uns bonecos também, mas tão sem dentes. 

Manta – 90/40 inaugura hoje, na Galeria Valbom, assinalando  os 90 anos de JAM, e os 40 da publicação da sua obra-prima, Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar. O álbum que é, segundo Baptista-Bastos, «um implacável chicote sobre os cinquenta anos que nos atrasaram duzentos». Nele, lança a mais feroz das perseguições ao mais persistente dos fantasmas. Mesmo depois do 25 de Abril, com já seis anos de trabalho dos vermes sobre os restos do ditador, ainda Manta sonhava com ele. E então, ao invés da típica incursão com os canários à frente, esses que sufocam ao primeiro sinal de um gás venenoso, encostou às cordas o pesadelo em que o país viveu imerso, sovando-o uma e outra vez nas tantas formas com que se enraizara no imaginário; o talento bem à altura da sanha vingativa.

Até 10 de Novembro, a galeria que teve o seu logótipo desenhado por JAM, vem dar seguimento a outras mostras que têm privilegiado a obra gráfica do artista, o seu carácter interventivo. Como  referia, em 1975, José Cardoso Pires, amigo de longa data e parceiro de tantas das «perigosas travessuras» em que se ia metendo, «nenhum pintor daqui e de agora resumiu com tantas subtilezas a temperatura social e política do fascismo agonizante». E adianta que o fez em dois planos paralelos: «pintura a longo prazo e comentário urgente, directo. Em vez da galeria foi-se ao jornal e ao cartaz; em vez do investimento plástico do cheque à vista, empenhou-se na crítica imediata da nossa realidade de todos – o cartoon.»

Se hoje o que não falta por cá são os lápis e os pinceis em riste, a ânsia de apanhar a onda no momento certo, e sair o herói na rebentação viral destes dias, mesmo um percurso modesto pela intervenção mantiana traça a distância que vai da «violência corrosiva» do seu traço grosso, e não se confunde com o mero chiste, com essa insolência mole dos que enchem o saco vindo para o tiro ao alvo sem projéctil nem pontaria. Mais: JAM «desdenha do sarcasmo porque o sarcasmo envolve, regra geral, despeito e ironia saturada», nota Cardoso Pires. E Osvaldo de Sousa, num dos textos que integram o soberbo catálogo desta exposição, lembra que «acima de tudo, ele é um criador com um profundo sentido cívico e ético em que a intervenção plástica não é um simples diletantismo produtivo, mas um meio de comunicação e introspecção pessoal e social, imbuída pela estética».

Na Galeria Valbom estão expostas 164 obras, sobretudo desenho a tinta-da-china e guache, reunidas em vários núcleos, o maior dos quais enquadrando 100 peças seleccionadas das caricaturas do livro de 1978. E a celebração da dupla efeméride fica a dever-se a Pedro Piedade Marques, que num artigo saído no Público provou ter ainda crédito enquanto Pedro que grita Lobo. E ao contrário de outros, ao invés de chamar a atenção apenas para si, consegue alertar para o pouco ou nenhum cuidado com alguns dos nossos mais vivos e admiráveis autores.

Além de assinar a curadoria da exposição, Piedade Marques é responsável pela concepção gráfica do catálogo, que se torna uma peça central na ainda escassa bibliografia de Manta, e um precioso objecto de colecção para os admiradores do artista que o Estado Novo, em 1973 (num estertor dos últimos, portanto), não se esqueceu de «honrar», movendo-lhe um processo-crime depois de o Diário de Lisboa ter publicado, em 1970, o poster «Festival», sem o mandar à Censura. Manta foi acusado de desrespeito à bandeira nacional, e se acabou absolvido, da peça em que expõe «a piroseira dominante do nacional-cançonetismo», patente no Festival da Canção da RTP, pode hoje dizer-se que se tornou a bandeira do país que resta, um cadáver abandonado às ratazanas da festivalice, à lepra das incessantes comemorações, num vazio cultural que tira até a vontade de intervir.

Arquitecto, pintor, ilustrador, cartunista, designer, leitor omnívoro, melómano sem círculos, eventual fotógrafo, como lembra Baptista-Bastos, JAM «ligou artisticamente o seu destino a uma espécie de metáfora da urgência». «Quero dizer: João Abel Manta tanto nega o Portugal bolorento da Direita padreca como a Esquerda bem-pensante que frequenta o Gambrinus e zela pela surdina da palavra», acrescentava, num texto de Outubro de 2005.

Se há uma falha que, à partida, talvez seja oportuno apontar a esta mostra é a reincidência na obra gráfica de JAM, em detrimento da pintura. Como relata José Carlos Vasconcelos, um dos principais instigadores do trabalho de ilustração de Manta, enquanto director do há muito imprestável Jornal de Letras, certa vez, este terá desabafado: «Sabe, isto dos bonecos foi das piores coisas que me podia ter acontecido”. Queixava-se de «as pessoas conhecerem melhor essas parvoeiras que as pinturas, que me fazem suar e nas quais ponho tudo».

Se a exposição traça o seu percurso através das facetas mais populares da obra de Manta, se mais uma vez se enaltece o contundente testemunho das décadas de repressão em que o país foi obrigado a ajoelhar, quando não a rebolar, no quotidiano fascista, e se a sobreposição de planos nesta contribuição cheia de camadas tornará legível o modo como este testemunho foi construído «por dentro», como aponta Cardoso Pires, «no todo mais íntimo, e com isso renegava uma aparência ordenada em mitos e glórias», felizmente, o catálogo não se fica por aí.

O livro que hoje se lança na abertura da exposição – que contará com uma visita guiada por Pedro Piedade Marques–, além do belo ensaio gráfico do designer, editor e curador, além das excelentes fotografias do acervo pessoal do artista, e das caricaturas e desenhos, fazendo a viagem pelo «escrúpulo do [seu] traço (quase anatómico)», e daí ao lado barroco, satírico na filosofia humorística, e deixando à vista o experimentalismo, por vezes surrealizante das composições, fotomontagens (Osvaldo de Sousa), vai mais longe. Piedade Marques assina um texto biográfico e ainda um estudo da centralidade desta obra na história do desenho de intervenção na nossa imprensa. E se nenhum texto deixa de contribuir para este «retrato em movimento» do nosso mestre da caricatura humana, a homenagem de José Luís Carneiro de Moura ao seu «ídolo» é um testemunho fulcral para se passar a uma segunda fase do reconhecimento do génio de João Abel Manta. Este ensaio bastante intimista do seu primo é um contributo notável para perceber por que foi que, a partir de 1981, JAM se libertou da obra gráfica e dos cartoon que lhe deram fama. Em comum com aqueles, as pinturas estão, da primeira à última maneira, «ligadas pelo envolvimento apaixonado com os materiais, a exigência de uma moralidade da representação e a recusa de um compromisso com a suavidade». 

Para libertar-nos também desta maldição de povo manso, o português suave, o desafio feito pela pintura de JAM, como explica o seu primo, «exige saber olhar para além da sedução imediata». «Não que a beleza seja uma desqualificação, mas é necessário procurar para além da superfície o ‘beautifully unsaid’ de Henry James», esclarece. «Desde as pinturas dos anos oitenta surge um universo angustiado, enigmático, onde João Abel Manta funde o quotidiano ao fantástico nas paisagens transfiguradas de Lisboa, paisagens invadidas por seres bizarros e ameaçadoras, produtos alucinados.» E se é importante não abandonar a meio o percurso, não nos ficarmos pelo mais imediato, é preciso ir ao ponto de o nosso olhar ser transformado, descobrindo «o belo do horrendo». A questão é: «como se pode descrever em beleza a alienação que repugna»? Quem faz a pergunta é Cardoso Pires, que não tem propriamente uma resposta, mas o espanto que o fez admirar no trabalho do amigo «beleza e inferno, incenso e sangue, útero e morte, real e alucinação».