O meu tio Rolando

Rolando Tomás Ferreira, o «Capitão de Abril» falecido na última quarta-feira, dia 9, tomou parte na preparação da revolução que devolveu a Democracia a Portugal. Durante o «Verão Quente» de 1975, enquanto Eurico Corvacho comandou a Região Militar Norte, Tomás Ferreira foi o chefe de Estado-Maior daquela região. Ambos enfrentaram sobressaltos vindos de todos os…

Nestas últimas semanas, desde que soubemos do agravar súbito do estado de saúde já frágil do meu tio e, com a minha mãe, fizemos as malas a correr para Penafiel, para o visitarmos naquela que eu não queria que fosse a despedida – contra toda a evidência – e em que cada vez que o telefone tocava sentíamos o coração ficar do tamanho de uma noz, nestas semanas com a espada de Dâmocles sobre a cabeça retive, naturalmente, muitos momentos. Tantos, como escolhê-los?

Logo, as memórias de infância: os aerogramas que eu escrevia ao meu tio Rolando, em Angola ou Moçambique, encontrava-se ele enleado numa guerra que não fazia sentido. Esteve em todas as frentes, Guiné incluída. Participando, sem o supormos, em reuniões conspiratórias que levariam à mudança do «estado a que chegámos», na expressão de Salgueiro Maia. Ao 25 de Abril e ao fim daquela guerra sem sentido. Ao golpe da madrugada libertadora dos cravos, onde ele esteve metido até aos cabelos.

Porque – é preciso dizê-lo – o meu tio pertenceu a uma das gerações que acordou para a política com a campanha de Humberto Delgado para as Eleições Presidenciais de 1958, as quais redundaram na farsa que sabemos. No final de Setembro passaram vinte anos sobre a iniciativa do Comboio da Liberdade, evocando aquele outro comboio que trouxe Delgado do Porto de regresso a Lisboa. Assinalavam-se os 40 anos dessa campanha. Eu vinha no comboio, como investigadora em História Contemporânea, então debruçada sobre o tema. O meu tio Rolando também ali veio.

Chegados a Santa Apolónia, ele convidou-me, à minha mãe, à minha irmã e a alguns amigos para almoçarmos juntos na Messe de Santa Clara. Durante esse almoço o meu Tio abriu-nos o livro das suas memórias políticas. Da sua participação nas manifestações maciças de 58, no Porto, contra o Estado Novo. Do que se lembrava da acção da PIDE em Tribunal. Estávamos no Outono de 1998 e eu já tinha feito as minhas escolhas ideológicas havia muito.

Houve, naturalmente, um período da minha vida em que eu já gostava muito do meu tio antes de aprender a admirar nele o homem do 25 de Abril e do período revolucionário que se lhe seguiu. Eram os tais tempos, de bibe, quando eu lhe escrevia, em letra infantil, que «os gatinhos já brotaram da “Pandilha” [a gata, que em minha casa, tinha ninhadas atrás das outras]». Nem mesmo a seguir ao 25 de Abril, quando eu, os meus pais e a minha irmã o fomos esperar ao aeroporto, a rádio a tocar Zeca Afonso o tempo todo, a alegria na rua, percebi bem quem era, realmente, o tio Rolando.

Nestes dias recentes de ansiedade dei comigo a pensar que o ambiente pós-Revolução (mesmo num meio não politizado, como aquele em que eu vivia), esse avesso do país cinzento e poeirento que eu conhecera e instintivamente estranhava, esse Sol de promessas fez-me nascer uma segunda vez. E o meu tio Rolando, sempre disponível para mim, sempre paciente, a dar-me tanta importância! Logo ele, que estava no centro das atenções, que cativava toda a gente com a sua simpatia natural e a expressão penetrante, arguta, dos seus lindíssimos olhos verdes, ele que tratava as pessoas de diferentes origens sociais com o mesmo respeito, mesmo, saídos que vínhamos, de um sistema social tão classista. Assim, ao longo dos anos eu vim constatando o quanto o meu tio era acarinhado, estimado, admirado – na doença recebeu visitas de soldados que estiveram sob o seu comando e que, tendo-o conhecido nessas circunstâncias, não o esqueceram. Assim, quando fiquei a saber que o meu tio era um «capitão de Abril», à amizade inicial acrescentei admiração e respeito. E criei com ele uma cumplicidade que nunca acabaria.

Dono de uma inteligência rara, com um sentido de humor fino e surpreendente, jamais desperdiçava palavras. Mesmo nestes últimos tempos de vida, doente e fragilizado, nos diálogos que mantínhamos pelo telefone, ele manejava a língua portuguesa com grande rigor, de forma despretensiosa e uma simplicidade só aparente. Foi assim toda a vida. Fazia largas leituras, aprendeu um pouco de Russo, colecionava máquinas de café antigas e cultivava plantas aromáticas que me dava a cheirar, revelando-se uma enciclopédia sobre o tema. Detestava a superficialidade, o culto da aparência.

Desenvolveu, a certa altura, uma paixão pela Astronomia – parece que estou a vê-lo com o telescópio, no quintal lá de casa! E ali, em Penafiel, discutíamos História, Religião, temas de política internacional, enquanto me mostrava álbuns de fotografias, armas antigas ou um objecto raro, em conversas que iam madrugada adentro. Interessava-se muito por Arqueologia e história local e, enquanto a saúde lho permitiu, manteve uma actividade cultural intensa na sua terra: fica, para exemplo, o facto de ter pertencido à Assembleia Geral da Associação de Amigos do (já premiado) Museu Municipal de Penafiel.

Guardo deste último encontro o apego com que ele segurava a minha mão. Claro que nunca mais os cravos de fogo de Abril irão trazer-me a mesma alegria, claro que as imagens do Portugal de 74 e de 75 vão reacender-me as feridas. Mas quero guardar o exemplo do melhor do meu Tio, deste Homem de Abril – o Abril de Liberdade, renascimento, luta e conquista de tantos direitos sociais. Ser digna do seu exemplo. Sobretudo nos duros tempos que vivemos.