A besta, ali tão perto

O apelo chegou pelo Whatsapp: os bombeiros preparavam-se para uma noite de vigilância a eventuais reacendimentos no parque natural de Sintra-Cascais – do Guincho à Malveira da Serra, passando pela Charneca, onde o fogo andou a roçar as casas, e da Malveira a Colares, passando pela Peninha, onde tudo terá começado dois dias antes –…

Saímos de casa poucos minutos depois. O supermercado já estava a fechar, mas ainda houve tempo para comprarmos umas paletes de garrafas de água, uns pacotes de bolachas e uns croissants.
Seguimos para o quartel. 

Aí chegados, fomos amavelmente recebidos pelo bombeiro da receção, que nos indicou onde deveríamos parar para descarregar o que trazíamos. Foi bom ver que, em tão pouco tempo, já muitos outros vizinhos tinham também respondido ao apelo – e as águas, frutas, leite, bolachas, pão já estavam organizadamente arrumados e prontos para seguir para os bombeiros em vigia.

Com a nossa modesta missão cumprida, regressámos a casa pela estrada da Malveira, até porque não dava para passar pela estrada do Guincho, porque bombeiros e GNR montaram barreira de segurança e obrigavam à inversão de marcha. Lá para cima, para o Convento da Peninha, a mesma coisa.

O estado de alerta de bombeiros e militares da GNRdeixam-nos mais descansados. Sobretudo por sabermos que tudo o que tinham a fazer estavam a fazer e bem feito. 
De facto, o trabalho de ataque ao fogo de Sintra-Cascais foi notável.

Gastou-se um balúrdio, com toda a certeza, tantas as centenas de bombeiros e meios terrestres envolvidos e tantos os meios aéreos que logo ao nascer do sol começaram a sobrevoar a zona e por lá andaram durante toda a manhã – e mesmo ao princípio da tarde por lá continuaram em voos de prevenção.

Mas foi, na verdade, um trabalho extraordinário. Que as populações assim protegidas e com seus bens salvaguardados bem podem agradecer.

Infelizmente, ardeu muita floresta e uma área enorme do parque natural de Sintra-Cascais.
Terá sido, ao que dizem, o pior fogo nesta zona de beleza natural singular.
E é mesmo desolador subir ao Santuário da Peninha e ver a área ardida.

Mas quem esteve durante a noite do incêndio no alto de Murches a ver as colunas de chamas a descer serra abaixo em direção à Malveira da Serra e quem viu o mar de fogo a caminho do mar, da zona do Guincho e da Areia mesmo a chegar à Charneca, tem de agradecer a sorte de o vento não ter virado para norte (como estava previsto) e de o combate, desta vez, ter sido tão eficaz.

O cenário era incrível. A linha do horizonte ali tão próximo era de quilómetros e quilómetros de chamas com uma altura inacreditável e, pela primeira vez, pude testemunhar aquilo que já tantas vezes tenho ouvido a testemunhas de outros incêndios: os autênticos minitornados de fogo que tão depressa se formam como fazem uma espécie de varrimento e desaparecem (são labaredas de umas dezenas de metros de altura, e em forma de cone invertido, que se deslocam em movimento circular, impressionante).

Com o vento de sudoeste e noroeste, nem o fumo ou sequer o cheiro chegaram a Murches, apesar de as chamas estarem a tão escassos quilómetros de distância e de serem tão assustadoramente visíveis.

Um vizinho meu que estava em casa descansado no sofá da sala foi alertado pelo telemóvel por um outro amigo preocupado com o que já estava a ver na televisão.  Bastou levantar-se e espreitar pela janela para logo avisar a mulher e zarparem de casa com os dois filhos pequeninos. Encontraram-me na rua, em frente ao portão, acabado de chegar de viagem e a olhar, atónito, para aquele mar de chamas.

Chegou no entretanto mais outro veículo, de um estrangeiro morador na Charneca que foi aconselhado a deixar a residência – tinha a família a dormir no carro. E depois um outro, com um grupo de jovens que só davam graças por o vento não ter rodado no sentido contrário: «Se vem pelo Pisão e pelo Zambujeiro e apanha o Cabreiro vai por aí fora e ninguém o apaga. Vai isto tudo».

Mais uns minutos e mais dois carros, desta vez de curiosos que vinham ver o que estava a passar-se e dali do alto o que se via quase tornava a paragem obrigatória. 

Uns garantiam que havia casas a arder na Malveira, outros na Charneca, outros ainda no Abano.
Afinal, não. Felizmente, não houve casas ardidas nem vítimas a lamentar. 
Mas não foi só fumaça, porque foi fogo e sério.

Valeram-nos os bombeiros e o não olhar a meios para dominar a besta.
Infelizmente, não foi assim há precisamente um ano, quanto tantos não tiveram esta mesma sorte. Infelizmente!