Brasil. Era para ser diferente

A campanha eleitoral mostrou que não há espaço para a moderação no estado atual do Brasil. Bolsonaro prepara-se para assumir a Presidência com a ajuda do voto antipetista e o seu adversário, Fernando Haddad, antigo ministro de Lula, pouco pode fazer.

Brasil. Era para ser diferente

O Brasil não se tornou fascista, homofóbico, misógino, racista e violento. Há fascismo, homofobia, racismo e violência no Brasil, mas dos 49,2 milhões de eleitores que votaram em Jair Messias Bolsonaro na primeira volta das presidenciais, no passado domingo, nem todos são fascistas, homofóbicos, racistas e violentos, nem sonham com o regresso da ditadura militar. Aquilo que têm em comum os brasileiros que se preparam para colocar o deputado do PSL no Palácio do Planalto, em Brasília, é o seu antipetismo. São contra Lula – transformado em símbolo de todo o mal que grassa no país – e contra o Partido dos Trabalhadores – que governou desde 2003 até ao impeachment de Dilma em 2016.

Jair Bolsonaro viu-se com a conjuntura perfeita para se transformar em messias para além do nome do meio. Sem mudar uma vírgula àquele que tem sido o seu discurso nestes 28 anos ininterruptos como deputado federal (antes pelo contrário, acentuou-o, dando-lhe mais assertividade), viu o país mudar o suficiente para que as suas posições saíssem das franjas do espetro político para o centro desta campanha.

Tal como vem sucedendo noutras partes do globo, a miscelânea de apoio agregado pelo populismo de Bolsonaro é heterodoxa e inclui gente que votou Lula e até mesmo Dilma; gente que, cansada da violência, quer mão dura contra o crime; gente que acha que a agenda progressista avançou demasiado; gente que defende políticas sociais, mas é contra o assistencialismo. Além, é claro, daqueles que estão em sintonia com as opiniões do candidato e que com ele partilham a nostalgia pela ditadura militar.

A campanha da primeira volta foi entusiasta, fanática, mobilizada. Bolsonaro pouco participou nela diretamente, depois de ter sido esfaqueado no abdómen num ato de campanha em Juiz de Fora, Minas Gerais. Por causa disso, aquilo que se previa, o desinflar de apoios no candidato – devido ao pouco tempo de antena na rádio e televisão, apenas oito segundos; devido aos ataques de que seria alvo por parte dos seus adversários e que não aconteceram por ele estar numa cama de hospital – acabou por não acontecer.

Antes pelo contrário, Haddad manteve-se em silêncio até tarde na noite eleitoral de domingo por temer que Bolsonaro pudesse ganhar a eleição logo na primeira volta, algo que quase aconteceu. Os primeiros números a aparecer davam o candidato da extrema-direita com 49% dos votos – Bolsonaro chegou a marcar lugar para a festa e a enviar 300 convites.

Candidatos já tiveram 46%, como Bolsonaro, ou mais e acabaram por perder na segunda volta; e outros obtiveram 29,3%, como Haddad, ou menos e acabaram eleitos. Mas isso só acontece quando há onde buscar votos e ao PT falta-lhe: Ciro Gomes, que terminou com 12,5%, deu-lhe apoio (embora crítico), tal como Guilherme Boulos (0,58%), mas Geraldo Alckmin (4,8%), João Amoêdo (2,5%), Henrique Meirelles (1,2%) e Marina Silva (1%) declararam-se neutros, libertando os seus apoiantes para escolher entre os dois candidatos na segunda volta. 

Com os seus 46%, Bolsonaro não precisa sequer de se mexer para tentar arregimentar os 4% que lhe falta, basta-lhe ficar à espera que venham até si os apoios, sobretudo daqueles que vão disputar a segunda volta para governador, interessados em beneficiar da onda de popularidade do candidato presidencial. João Dória, candidato do PSDB ao Governo de São Paulo, declarou logo no domingo o seu apoio a Bolsonaro.

«Quanto mais forte está um candidato, menor a necessidade de fazer concessões, ajustar discursos e moderar plataformas. Ao abrir vantagem sobre o seu principal adversário, Bolsonaro atraiu o apoio de políticos interessados em se beneficiar de sua imagem ou derrotar o PT», escreveu Bruno Boghossian, na Folha de São Paulo. E como mostra a primeira sondagem da segunda volta, publicada a meio da semana pelo Datafolha, Bolsonaro tem 49% das intenções de voto contra 36% de Haddad – 58% a 42% quando se contabiliza só os votos válidos.

Ao invés, Haddad está obrigado a mudar, ganhar imagem própria (depois de uma primeira volta em que foi Lula), aproximar o seu discurso ao centro, aligeirar o vermelho do PT, ir buscar votos ao chamado ‘centrão’ (atropelado por uma campanha de antípodas) e ao eleitor racional que tem a democracia como valor mais forte que qualquer raiva antipetista. Uma raiva imensa que, para muitos, nasce da desilusão: os brasileiros não duvidam da corrupção generalizada dos políticos, mas o PT prometera ser diferente e acabou por ser igual, epicentro de vários escândalos de gestão de dinheiros públicos em troca de favores políticos, sendo a Operação Lava Jato a gota de água. Era para ser um Brasil diferente com o PT, afinal o pântano da corrupção só se adensou.

Daí que Haddad precise de toda a ajuda possível para reverter a conjuntura desfavorável em que se encontra nesta segunda volta e toda pode incluir até uma ajudinha do céu ou, pelo menos, dos seus representantes na terra. O candidato do PT foi quinta-feira à Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), a mais alta instância da Igreja Católica no país, e se não saiu de lá com o apoio explícito dos bispos – até porque a legislação não o permite e a nota emitida depois do encontro sublinha: «A CNBB não tem partido nem candidato» –, veio com uma preferência implícita. O bispo de Brasília e secretário-geral da organização, D. Leonardo Steiner, que o recebeu, em entrevista ao UOL, pediu ao eleitor católico que observem se «os candidatos pregam mais ou menos democracia; se buscam a convivência fraterna com base na educação, no respeito e justiça social», acrescentando que «não existem salvadores da pátria» e que a Igreja Católica é a «favor da democracia».

Bolsonaro, a quem muitos vêm como salvador da pátria corrompida, é um conhecido defensor da ditadura militar – na sua declaração de voto no impeachment da presidente Dilma Rousseff (presa política no regime militar), chegou mesmo a elogiar o coronel Ustra, chefe da polícia política durante a ditadura militar brasileira (1964-1985): «Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff».

Aquele que o acompanha como candidato a vice-presidente (cargo marcante na história democrática brasileira pós-regime militar – em 33 anos, três dos oito chefes de Estado eram vices que substituíram o Presidente), o general Antônio Hamilton Mourão chegou a defender durante a campanha que Bolsonaro promovesse um autogolpe depois de assumir o poder, suspendendo as instituições democráticas, e que a Constituição fosse revista por um grupo de «notáveis», à margem do Congresso. É certo que o candidato já desmentiu o seu vice, garantindo que não é sua intenção fazê-lo, mas nunca se sabe, até porque quem se apresta para suspender a democracia não o anuncia.