Revenge Of the 90s. Quando o prazer perde a culpa

Há dez anos, quem tinha o saudosismo dos anos 80 eram os decisores. Quem tinha dinheiro e decidia nas marcas ou empresas, diz Paulo Silver

Revenge Of the 90s. Quando o prazer perde a culpa

André Henriques era uma voz familiar das manhãs da rádio, primeiro na Mega FM e depois na RFM, com vida noturna como DJ e produtor de eventos como o Let’s Control The 80s e as primeiras festas Let’s Control The 90’s, quando «temporalmente ainda não fazia sentido». Esteve ligado à editora de música eletrónica Bloop, através da qual chegou a publicar jornais e a abrir uma loja de discos em vinil. 

Quando, após 15 anos, decidiu desligar os microfones para se dedicar aos projetos pessoais a tempo inteiro, cruzou-se com Paulo Silver num sábado à noite. Ator, este mudou-se para Madrid, onde conheceu o turno da madrugada por dentro como relações públicas. Na capital espanhola abriu duas discotecas e, após uma série de coincidências que envolveram uma viagem à Croácia «para curtir» e uma escala em Londres para o casamento de um casal conhecido nessas férias – em que ficou amigo do dono e do fotógrafo de uma discoteca –, descobriu The Underground Rebel Bingo Club, que viria a produzir primeiro em Madrid, depois em Lisboa com grande estrondo, estreias a que se seguiu a exportação do evento para o Rio de Janeiro, São Paulo, Nova Iorque e Los Angeles.

O furor do Rebel Bingo trouxe convites para trabalhar eventos conceptuais e corporativos. Da experiência adquirida, da comunhão entre ambos e os dois sócios, Hugo Castanheira e Miguel Galão, e da vontade de produzir «uma festa para a nossa idade», nasce a Revenge Of The 90s. Festa e epifenómeno que esta noite arrasta doze mil pessoas até à FIL para viajar no tempo a ver e ouvir ‘Better Off Alone’ dos Alice Deejay, ‘Cotton Eye Joe’ dos Rednex, ‘Pump Up_The Jam’ dos Technotronic na voz de Daisy Dee; Ana Malhoa, Herman José, os Anjos, Melão, as Nonstop e Batatinha e Companhia.

André Henriques e Paulo Silver, são eles, mesmos A Viagem, e o cartaz completa-se com os residentes Santa Manel, Galão com Coca, Van Brallen e Dress Her.

O saudosismo dos anos 90 é uma questão geracional?

André Henriques – É. Todos nós temos que ser adultos o suficiente para nos deixarmos de preocupar com algumas convenções sociais. Quando era adolescente, as Nonstop eram pirosas e para as miúdas. Eu era o tipo dos Nirvana e dos Pearl Jam. Se há dez anos aquilo [Nonstop] tocasse numa pista, eu iria continuar a achar o mesmo. Hoje berro alto e bom som as Nonstop e os Nirvana. Tem que haver uma maturidade para chegar aí.

Quando o guilty pleasure deixa de ser guilty.

A.H. – Exato!

Paulo Silver – Tem a ver com o tempo de cura do «azeite» (gargalhada). O azeite é como o vinho, precisa de bons anos para maturar. Há uma altura em que, quando a música é muito popular, passa a ser «azeite» mas quando esse «azeite» matura é ótimo. Dá para molhar o pão e meter sal. Passa a ser gourmet. Tem a ver com isso e não só. Há dez anos, quem tinha o saudosismo dos anos 80 eram os decisores. Quem tinha dinheiro e decidia nas marcas ou empresas. Há um poder de compra diferente para esta geração que já nem sempre sai e escolhe muito bem para onde vai. Todos estes fatores levam a que agora já seja a época dos anos 90. «Nós» somos agora os decisores. Temos poder de compra e estamos bem na vida. Temos um grupo de amigos que já não vemos há imenso tempo e é uma «desculpa» para estarmos juntos. O ciclo da saudade demora entre 15 e 20 anos.

Quem vai às festas?

P.S. – Pessoas entre os 27 e os 40.

A.H.- E há pessoas com menos e pessoas com mais.

P.S. – Vamos partir do 20/40. Esta primeira faixa viveu no limiar dos anos 90 mas há um ciclo musical que se repete. Esta adolescência que viveu no início dos anos 2000, ainda consumiu muito os 90. Não se vai lembrar de tudo porque há músicas que morreram e outras que se mantiveram. Depois há a faixa que era adolescente nos 90 e consumiu tudo: séries, filmes e canções. E há aqueles que já eram adultos e continuaram a sair à noite. Já não sente tanto como a faixa geracional intermédia mas ainda teve impacto. Diria que dos 25 aos 35 são as pessoas que realmente foram afetadas por tudo isto. Sabem todas as canções e conhecem todas as séries. Depois, há quem vá porque está na moda e quem vá porque quer ir curtir e se lembra de tudo. Temos grupos com pessoas de 50, 60 e 70 anos a ir. A mãe de um dos nossos sócios tem um grupo de dentistas em que vão 60 de cada vez curtir.

É a saída mensal?

P.S. – Agora já nem mensal é.

A.H. – Temos pessoas a escrever-nos nas redes sociais a dizer: «Precisei de 60 anos para ir à melhor festa da minha vida». Vivemos para esse retorno. De festas e eventos está o mundo cheio.

P.S. – O André tem mais experiência a trabalhar para este público do que eu – e muito bem, porque é aí que está o dinheiro (ri-se). Eu sempre trabalhei para universitários e pré-universitários que pouco ou nada tinham saído à noite a não ser na festa da terrinha. É muito fácil receber emails a dizer «mudaram a minha vida» ou «isto é que é uma festa», mas quando se passa para uma festa de adultos e essas mensagem continuam a chegar, é porque alguma coisa está a ser bem feita.

A grande diferença entre o DJ que passa as canções dos anos 90 e o Revenge Of The 90s está na forma como a festa é produzida?

A.H. – É o formato. Mais do que o saudosismo de uma época, mais do que o fenómeno, é a forma como acontece. Depois, o conteúdo é saudosista. Entre uma festa dos anos 90 com um DJ e a forma como apresentamos, a diferença é clara. É provável que, se estiveres a ouvir um DJ a passar uma hora de anos 90, é natural que às tantas apeteça ouvir música de 2018. Coisa que não acontece connosco. Há uma banda criada para o efeito, discos pedidos, um espetáculo com um guião desenhado para ter momentos marcantes, convidados surpresa e anunciados. É todo um espetáculo que toca nas pessoas. A produção é um valor acrescentado mas isto nasceu na [discoteca] Lontra para 500 pessoas com confettis de mão.

P.S. – Desenhámos a festa para ser uma viagem sensorial. Queríamos causar o maior impacto nas pessoas trabalhando emoção. O nosso marketing é emocional e a nossa produção de eventos é emocional. Trabalhamos o evento desde o momento zero. Quando o bilhete é comprado, ainda não se sabe onde a festa vai ser. Começa aí o turbilhão. O que é que vamos vestir? Como é que vamos para lá? Onde é que jantamos perto? Qual será o artista surpresa? O que é que vai acontecer? Às 10 da manhã, chega um SMS com o local da festa que dispara a adrenalina. No local, essa emoção é trabalhada ao nível do paladar. Os push pops e as Peta Zetas transportam diretamente para a infância ou adolescência. E entra-se num playground para adultos com Segas e Nintendos. Há um DJ para quem se pode ligar a pedir músicas que remete para o universo do Agora Escolha. Estamos sempre a convidar para jogar o jogo. Quando as pessoas estão na fila, já estão a sorrir. Costumo dizer que, quando acabamos às 04h30, já estamos todos nus. No sentido figurativo, porque já se está toda a gente a cagar. Já riste, já dançaste, já suaste, já choraste, já abraçaste a pessoa ao lado que não conhecias de lado nenhum, cantaste no karaoke com outra qualquer e gritaste-lhe na cara.

Quando o guilty pleasure deixa de ser guilty.

A.H. – Exato!

Paulo Silver – Tem a ver com o tempo de cura do «azeite» (gargalhada).

Quando é que começaram a trazer os convidados internacionais?

A.H. – No ano passado, no Algarve, em que trouxemos os Technotronic e os Snap. [Em Lisboa], explorámos o mercado nacional dos anos 90 até que chegámos a 24 de abril. Aí, o tiro era para 12 mil pessoas e achámos que precisávamos de acrescentar cartaz aos nacionais. Eles estão por toda a Europa. Os Los Del Rio não vieram a Portugal na altura em que se dançava a ‘Macarena’.

P.S. – E dizer-lhes para virem a uma festa anos 90 é o pão nosso de cada dia. Eles não têm música nova. Mas quando chegam, percebem que é algo diferente. Temos tudo isto com todos…

A.H. -…porque a maioria dos formatos anos 90 são concertos. 30 minutos de Lou Bega, Vengaboys, 5ive…Nós incluímo-los na nossa festa. Eles fazem parte de uma dinâmica. O evento nunca é sobre eles. Essa é a vitória do formato.

E os portugueses, como é que reagiram quando foram convidados?

A.H. – Há um momento transformador na Revenge que são os Anjos. Tínhamos feito uma primeira festa na [Discoteca] Lontra para 500 pessoas e, passados três ou quatro dias, ligo-lhes. Sentámo-nos com eles com uns vídeos toscos. Íamos fazer uma festa maior no Bolero e gostávamos que eles aparecessem a meio. Eles deram-nos conselhos valiosos, que ainda hoje seguimos, e confiaram. Hoje, as pessoas conhecem o Revenge of the 90s, mas naquele segundo evento não sabiam o que era. Foram porque um amigo tinha ido a uma festa muito gira e secreta há um mês. Nós temos aqueles karaokes gigantes e a seguir a um desses karaokes, o Paulo chama duas pessoas ao palco para cantar. As pessoas acharam que era um momento aleatório. Tínhamos distribuímos máscaras e quem subiu ao palco também estava mascarado. Começa o instrumental do ‘Quero Voltar’, eles cantam de máscara, o volume começa a subir até que o Paulo diz: «Revenge of the 90s, convosco os Anjos!», eles tiram a máscara e é um momento de mudança. Havia pessoas a chorar, às cavalitas umas das outras e a tentar tocar. O comportamento típico de um concerto. Estou a contar isto e a arrepiar-me. Agradecemos até hoje aos Anjos. A partir daí, foi uma espécie de voto de confiança dos artistas nacionais. A seguir vieram o Melão; o Helder, o Rei do Kuduro, o João Melo (Fúria do Açúcar), conseguimos reunir as Nonstop, e até um David Fonseca estar vestido de cão durante três músicas até tirar o carapuço. E foi ele a pedir para entrar na nossa festa vestido daquela forma. Geramos emoções incríveis. Há muita gente que nunca viu os Excesso ao vivo e tem ali o Melão. Quem nunca viu as Nonstop e provavelmente nunca mais vai poder ver porque elas reuniram-se para isto. Até recordar artistas como o Toy que está a ter agora uma segunda vida.

Será o novo José Cid?

A.H. – (ri-se) Já disse isso várias vezes. Ele está para as festas dos anos 90 como o José Cid estava para as festas dos anos 80. É um kitsch que sabe bem.

Quem gostavam de trazer?

P.S. – Backstreet Boys e Spice Girls. Estamos em cima do acontecimento mas não vai ser nada, nada, nada fácil, principalmente devido ao cachet. Se nos derem dois milhões, conseguimos fazer as Spice Girls amanhã. Backstreet Boys é um pouco mais barato e estamos a pensar mas para outro contexto que anunciaremos (sorri).

A.H.- Vamos cumprir hoje um sonho que é o Herman. Tivemos os Silence 4 pelo David Fonseca mas ainda há muita coisa para fazer. Haja dimensão, porque alguns envolvem investimento. Gostava muito de ter os Xutos. Fizemos um tributo ao Zé Pedro no Coliseu, na passagem de ano, e foi dos momentos mais marcantes.

P.S. – Há três sonhos…

A.H. – (interrompendo) Ornatos!

P.S. – Não vai ser nada fácil porque o Manel [Cruz] não quer. Talvez ele possa fazer Ornatos um dia, mas banda acho que não vai acontecer. Da Weasel e Excesso mas é muito, muito, muito, muito difícil de acontecer. Perto dos 99,9% de não acontecer. Já tivemos o Virgul a fazer um medley de Da Weasel. E os Excesso são os artistas mais pedidos. Levávamos os dois e fazíamos o Estádio Nacional.

A.H. – Com o Pedro Abrunhosa a tocar o Viagens e o Padre Borga.

Qual é o limite?

P.S. – O céu. The sky is the limit (com sotaque David Attenborough).

A.H. – Dizem-nos muitas vezes que mudámos o jogo. Nós não mudámos, só mostrámos que havia um jogo para jogar além de pôr um DJ a tocar. Esperemos servir de inspiração e que queiram também jogar o jogo. Há um país à espera. Além de fazermos isto, gostamos muito de ir a isto. E não nos deixamos de pôr na pele das pessoas.