Andam todos a fazer de conta

Se há crime de lesa pátria que tenha ocorrido nos últimos tempos foi o que se passou em Tancos com o assalto aos paióis nacionais de material de guerra e tudo o que se lhe seguiu com vista ao seu encobrimento. Um crime de lesa pátria porque manifestamente atentatório da segurança nacional – e internacional…

Se há crime de lesa pátria que tenha ocorrido nos últimos tempos foi o que se passou em Tancos com o assalto aos paióis nacionais de material de guerra e tudo o que se lhe seguiu com vista ao seu encobrimento.

Um crime de lesa pátria porque manifestamente atentatório da segurança nacional – e internacional – e revelador das fragilidades das Forças Armadas portuguesas e das hierarquias militares e do Estado até ao seu mais alto representante ou comandante supremo.

Não vale a pena continuar a fazer de conta, como se Portugal fosse uma democracia madura e desenvolvida e os líderes políticos, militares e até judiciários não nos continuassem a tratar como se não nos tivéssemos livrado faz décadas da canga e das palas terceiro-mundistas.

Se a Justiça fosse mesmo cega e verdadeiramente autónoma e independente, desta vez tinham de ir todos de escantilhão.

Todos sabiam. E, se não sabiam, tinham obrigação de saber. E, se tinham a obrigação de saber, tinham de tudo ter feito para o saber.

Basta revisitar as declarações públicas que as mais altas figuras do Estado proferiram sobre Tancos nos últimos 16 meses.

O Presidente da República tem publicamente preanunciado os passos que a investigação tem dado – mostrando que acompanha de perto um tema tão grave, sendo devidamente informado ou recolhendo a informação que se impõe. Enquanto mais alto magistrado da nação e comandante supremo das Forças Armadas não podia ser de outro modo. Se nada soubesse do que se passou até aqui e permanecesse ignorante e desinteressado, isso sim, seria um erro grave e, por inação ou omissão, inaceitável. 

Ora, se tem estado permanentemente em cima dos acontecimentos, como não pode deixar de ser e por isso tem feito reiteradas exigências, não pode manter-se desinformado da fantochada da encenação de encobrimento – e já devia ter convocado o Conselho de Defesa Nacional ou mesmo o Conselho de Estado e desabado sobre tudo e todos os que, no Governo como nas Forças Armadas e nas estruturas de investigação, o andaram a fazer de palhaço.

Por outro lado, o presidente da Assembleia da República já devia ter sido convidado a explicar o porquê das suas declarações à Visão, em outubro do ano passado – a entrevista de Ferro Rodrigues data do final de outubro de 2017 (dias depois do aparecimento de armas na Chamusca) -, em que disse que Tancos, sendo um caso «grave», «teve momentos altamente cómicos». Quem fala assim, sabe de certeza do que fala. E, se sabe, quem na hierarquia do Estado não sabe?

Aliás, também o líder da oposição, Rui Rio, assumiu publicamente que não podia dizer tudo o que sabia sobre Tancos. Foi no início de setembro, quando resolveu quebrar o silêncio após dois meses de férias. E fê-lo também num tom jocoso, que até lhe valeu mais críticas. O que sabia, afinal, Rui Rio?

No meio de tudo isto, o primeiro-ministro assobia para o lado e segue o seu caminho, como se nada, mesmo nada fosse consigo. Como se pudesse ser verdade que o ministro da Defesa, mal sabendo do encobrimento, não o tivesse imediatamente comunicado ao primeiro-ministro. 

Se não o tivesse feito, poderia António Costa ter-se limitado a anunciar que aceitou o pedido de demissão do ministro da Defesa quando este o fez?

Está em causa um crime de lesa pátria, que afetou sobremaneira a credibilidade externa do Estado português e das Forças Armadas – fatal para um país pequeno e sem recursos, que vive da excelência dos seus recursos humanos, obviamente assim hipotecada, quando não mesmo falida.

E perante tamanha falha da segurança nacional e tanta incompetência na gestão de todo o processo, pode o ministro da Defesa ter continuado a ter a confiança do primeiro-ministro e do Presidente da República passado mais de um ano e merecer elogiosas palavras reconhecedoras de lealdade e de competência na hora da aceitação da sua demissão?

Ou pode admitir-se que o ministro da Defesa tenha sido informado da fantochada da pretensa devolução das armas roubadas de Tancos e se tenha juntado à rede de encobridores, ao invés de informar de imediato o chefe do Governo e o Presidente da República?

Não pode! 

É impossível!

Da mesma maneira que é absolutamente impossível o chefe de gabinete de Azeredo Lopes – militar de alta patente – não ter informado o ministro quando aquela mesma operação lhe foi comunicada (aliás, se não o tivesse feito, não teria saído do DCIAP como mera testemunha após ter prestado declarações).

Por isso, e porque estamos perante assunto de extrema gravidade, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa têm de urgentemente ter e ver tudo esclarecido.

Não chega, a um e ao outro, vir dizer agora que continuam sem nada saber ou que cabe à Justiça apurar tudo o que tem de ser apurado, «doa a quem doer».

Não chega. Se continuam sem nada saber, têm de exigir saber. E dizer.

De outro modo, como pode o povo confiar em quem os governa e os representa ao mais alto nível?

Usa citar-se o Rei D. Carlos ou o general romano de quem se diz que, chegado à fronteira vindo de Espanha e olhando para o povo que preparara a sua receção, exclamava: ‘Lá está aquela choldra que não se governa nem se deixa governar’.

Com Tancos, e perante o comportamento das mais altas hierarquias do Estado, políticas e militares, a choldra é outra. 

E  o povo só mesmo por falta de alternativa ou por continuar empalado e com a canga bem assente pode sujeitar-se a ser por ela governado.