Joe Strummer. O que foi podia ter sido

Joe Strummer veio do punk para ser o contraditório da puberdade dos três acordes e da mínima mensagem do no future. Demasiado velho para ser novo e demasiado novo para ser uma lenda, morreu sem estátuas em 2002. A antologia ‘Joe Strummer 001’ recapitula uma história pouco lembrada

Uma pesquisa instantânea confirma o desencontro entre a importância de Joe Strummer e a ordem do dia. Entre uma das cinco primeiras entradas no Google, está uma notícia da BBC de 2002 (!) a confirmar a morte prematura de ataque fulminante de coração, em Somerset, onde vivia, depois de ter ido passear o cão. Tinha 50 anos. 

Strummer morreu dois dias antes do natal e séculos digitais antes da glorificação póstuma das redes sociais que, para o bem e para mal, dá espessura mediática a quem, por geração ou marginalidade assumida, não a teve ou não quis – quantos dos que verteram lágrimas pelos dedos conheciam a guitarra endiabrada de Phil Mendrix ou o azul de Helena Almeida? 

Hoje, seria um herói mas Strummer saiu de cena sem cortejos mediáticos. Talvez quisesse assim, apesar do fim inesperado. Morrer como um cidadão sem privilégios acrescidos, apesar de as canções dos Clash terem elevado o critério musical e poético do punk, e com isso terem atestado o depósito com litros de energia contra o instituído.

Filho de um diplomata indiano ao serviço dos negócios estrangeiros britânicos, Strummer, de certidão John Grahan Mellor, nasceu em Ankara, na Turquia, e foi uma criança nómada. Viveu no Cairo, na Cidade do México e em Bona até se fixar em Surrey, Inglaterra, com o irmão aos 10 anos. Formou o gosto a ouvir Little Richard, Beach Boys e Woody Guthrie, chegando a a alcunhar-se de Woody. Estudou na Central School of Art and Design de Londres e foi ilustrador profissional mas acabou por deitar mãos às guitarras para expressar uma voz consciente e literata, que sempre prezou a inteligência além das máximas. 

Antes de o punk entrar no sangue, começou pelo rhythm & blues, a raíz do rock’n’roll, e pelos clássicos supracitados nos pubs de Londres, com a primeira banda: os The 101ers. Deixou cair o Woody Mellor e nasceu o Joe Strummer. O resto é ruído, experimentalismo e hinos. Em 1976, o ano antes do punk, os anónimos Sex Pistols abriram um concerto dos 101ers. Strummer não só ficou impressionado como foi abordado por Bernie Rhodes e Mick Jones, o futuro guitarrista dos Clash, algumas horas depois. Queriam que fossem vocalista de uma banda quase a rebentar as águas. A 4 de julho de 1976, invertiam-se os papéis e nasciam os Clash, abrindo agora para os Sex Pistols. E se os segundos foram o rosto do punk, os Clash foram o cérebro, conciliando nervo, combate, pensamento e experimentalismo. Não se prenderam ao rock e beberam no funk a poção dançável que conserva singles como ‘Rock The Casbah’ dentro do prazo de validade de anca. 

Durante anos, a viúva Lucinda Tait não conseguiu lidar com a perda e só recentemente foi capaz de ouvir as gravações reunidas em Joe Strummer 001, resgatadas no celeiro da quinta de Somerset. 

Algumas remontam ao período pré-Clash de rocker de pubs com os The 101ers. Outras são posteriores à separação (de que se arrependeria) quando se aventurou por bandas sonoras. E uma terceira parcela reencontra Strummer e os Mescaleros, que o acompanharam na última etapa de vida. 32 canções condensadas em 124 minutos de música a caminho do punk mais que perfeito ou de partida de um universo demasiado pequeno para as ideias musicais e ideológicas. E já que o universo só se uniu através de T-shirts de retalhistas multinacionais, foram os amigos a resgatar, polir e dar ao mundo as gravações a que nem a mulher queria regressar. 

Strummer há-de ser sempre dos Clash e os Clash sem Strummer não seriam possíveis – nem foram os mesmos sem Mick Jones, o guitarrista-braço direito, despedido em 1983 com consequências imediatas no derradeiro e dececionante Cut The Crap do ano seguinte. Depois de experimentar o cinema, Strummer testou-se a solo no esquecido Earthquake Weather, de 1989. As críticas foram ferozes, as vendas dececionantes. Quando o crítico da Uncut, Allan Jones, o entrevistou nesse natal encontrou-o «dececionado» e «humilhado». E agora?, perguntou-lhe. «Talvez desapareça», foi a resposta desiludida. E desapareceu mesmo.

Na década de 90, evaporou-se. Strummer haveria de descrever essa época como os Wilderness Years. Um cocktail de seca criativa, drogas e depressões com origem no princípio do fim dos Clash quando o guitarrista foi despedido. Joe Strummer 001 recorda ‘Love Kills’, a primeira canção reatadora da relação com o Mick Jones, escrita em 1986 para o filme Sid & Nancy de Alex Wood. 

No final dos anos 90, Strummer volta a encontrar companhia nos Mescaleros, com quem gravou os derradeiros três álbuns – o terceiro Streetcore editado post-mortem. Além do dub exultante de ‘Yalla Yalla’ pouco sobra deste período além dos factos.

A morte inesperada na meia-idade, o quase vazio pós-Clash e a era pré-digital formam um triângulo explicativo do relativo esquecimento de Joe Strummer, apesar de ter sido nuclear não só para os Clash, como para a história do punk e de um período de ouro da música de combate à política.

O que foi não volta a ser mas em Joe Strummer há tudo o que também podia ter sido.