A ‘bomba’ ao retardador…

O ‘branqueamento’ de que o Expresso  se fez eco foi uma tentativa tosca de ‘tapar o sol com a peneira’

Há uma espécie de feitiço – ou de enguiço, vá lá saber-se – que se derrama sobre os governos socialistas quando tudo parece correr-lhes de feição, com o país aparentemente rendido e na mão. Foi assim, exuberantemente, com José Sócrates, após ‘golpes de mão’ cirúrgicos na Justiça, na banca e nos media. 

E está a ser assim, inesperadamente, com António Costa, quando se achava ungido pela oligarquia, pela esquerda comunista e por Belém.

Se recuarmos, chegamos a Mário Soares, que impôs ao país dietas rigorosas, com o FMI como ‘pronto-socorro’, por causa dos cofres vazios da Fazenda, ou a António Guterres, que deu ‘corda aos sapatos’ assim que percebeu que estava à beira do pântano.

O ‘azar’ persegue o PS no poder. Quando a teia está montada, desaba uma qualquer fatalidade que varre o laborioso trabalho de aranha…

Com um Presidente afetuoso e admirador confesso do virtuosismo otimista de António Costa (por muito ‘irritante’ que seja), a economia a dar sinais de reanimação (graças ao boom turístico), as esquerdas comunistas dominadas e postas em sossego com mais umas rendas, e as web summits para entreter basbaques tecnológicos, o andor parecia seguro no meio da procissão, a caminho da ‘canonização’ do primeiro-ministro em exercício. 

Mas há coisas que parecem bruxedo. Tancos, por exemplo. 

Em outubro do ano passado, Costa saudava sem sobressaltos «o trabalho desenvolvido pela Polícia Judiciária Militar e pela Guarda Nacional Republicana que permitiu recuperar» o material militar desaparecido dos paióis de Tancos. E deu o assunto por encerrado. Mas não estava. E não está. Longe disso. 

Em outubro deste ano, perante as suspeitas que já o cercavam, Costa negou que alguma vez tivesse sabido do memorando da novela, entregue no gabinete do então ministro da Defesa, o qual também negara ter conhecimento do documento.

Afinal, e de acordo com o Expresso, Azeredo Lopes «foi mesmo informado do teor do memorando da PJM» sobre a operação de devolução do material roubado em Tancos, embora desvalorizando o seu conteúdo, porque «não percebeu a existência de um encobrimento e não deu importância ao documento».

Ao veicular esta tese peregrina, soprada ou não de algures, só duas hipóteses se perfilam: ou o jornal passou um atestado de incompetência a Azeredo, ou tentou isentá-lo de responsabilidades como se fosse tolinho. 

O semanário concluía, aliás, prosaico, em título, que esta nova narrativa sobre a ‘distração’ do ex-ministro «salva (quase) todos». 

Num surpreendente contorcionismo, o semanário de Balsemão foi ainda mais longe e, além de ‘plantar’ vários recados atribuídos a ‘fontes’ não identificadas de Belém, ainda escreveu isto: «Se o ministro da Defesa não percebeu toda a dimensão da tramoia, é mais natural que tenha omitido a Costa. E se Costa não soube da tramoia, não podia partilhá-la com Marcelo».

Eis uma luminosa dedução, em nome do ‘perímetro de segurança’ de Costa, para salvar a honra do convento e poupá-lo a mais maçadas. Embora, como escreveu Paulo Rangel, «a situação é demasiado grave e demasiado séria para que tudo culmine num abafamento ou branqueamento em nome de supostos valores de escala superior».

Neste baile de sombras, o que parece óbvio é que muita gente diz que não sabe o que soube, e só isso explica o discurso contraditório e o embaraço visível em alguns protagonistas do enredo. 

A história de Tancos é um braseiro que continua aceso e que já queimou o ministro e o chefe do Estado-Maior do Exército. 

Pode simbolizar, ainda, uma ‘bomba ao retardador’, pronta a detonar a qualquer momento, estilhaçando as contas de António Costa e obrigando Marcelo Rebelo de Sousa a decisões extremas, forçado pelas circunstâncias. 

Marques Mendes, que se revê no duplo papel de comentador e de conselheiro de Estado (incluído na quota de Marcelo), apontou na SIC o dedo ao Governo, dizendo que «está suspeito (…) politicamente falando», enquanto enfatizou que «só houve uma entidade que se portou bem nisto tudo: o Presidente da República».

Se Mendes acendeu o semáforo, com o amarelo intermitente a piscar para o vermelho, o PSD já admitiu essa crise política, fazendo saber que está preparado para uma antecipação do calendário eleitoral. E o CDS não menos. 

O pior é que os sociais-democratas estão entregues a uma liderança baça, rodeada de gente sem nervo, onde poucos escapam. E esse é um óbice para Marcelo, que conhece bem o partido.

O cenário é mais complexo do que parece. O Governo, apesar de remodelado, poderá estar a ‘perder o pé’. O ensaio de ‘branqueamento’ de que o Expresso se fez eco é um sinal e uma tentativa tosca de ‘tapar o sol com a peneira’ – no pressuposto (errado) de que os portugueses estão definitivamente infantilizados…