Pedro Caldeira Cabral. ‘Em casa todos nós cantávamos músicas do século XVI’

Pedro Caldeira Cabral é uma aula de história de nível avançado. Enquanto apresenta os 25 anos do álbum do Concerto Atlântico, comemorados este domingo no Convento de São Pedro de Alcântara às 16h30, revolve os livros para explicar a relação entre música e história, e chegar à principal conclusão: valorizar a memória é compreender o presente…

De onde vem o interesse pela guitarra e pelos instrumentos? 

Vem da infância, do meu ambiente familiar. Os meus pais faziam música erudita em casa. O meu pai [Francisco Caldeira Cabral] tinha estudado canto e cantava muito bem, ao nível profissional, embora fosse arquiteto paisagista. A minha mãe tocava bastante bem piano e, portanto, fazia-se música. Como sou o mais novo de nove irmãos, apanhava com os meus irmãos todos a fazer música quando os meus pais não estavam a fazer. Sentados ao piano e a cantar. O meu interesse particular pelos instrumentos de corda começa aos oito anos e por duas razões. Primeiro, por ter descoberto um instrumento na rádio que me fazia confusão. Perguntei ao meu pai e era uma guitarra portuguesa. Como havia uma em casa da minha avó, pedi ao meu pai e ele ofereceu-ma quando eu tinha dez anos. Mas antes já tinha um instrumento que tocava. Havia um familiar meu, médico, que tinha estudado em Coimbra e tocava guitarra portuguesa. Deu-me algumas lições.

 

A partir daí, aprende intuitivamente?

Não, esta aprendizagem permitiu-me conhecer e dominar as bases técnicas. Depois, como tinha contacto com a música e ia muito a concertos – o que, na altura, era uma prática reservada a uma elite burguesa -, fosse na Fundação Gulbenkian, no Círculo de Cultura Musical ou na Juventude Musical, a que pertenci desde muito cedo, havia concertos regulares e alguns deles com explicação. Houve também uma série muito marcante para a minha geração, apresentada pelo maestro Leonard Bernstein, que passava na televisão. Como só havia um canal, bebíamos as explicações do maestro. Foi também uma descoberta. Aí em 64 ou 65, comprei o livro Concertos para Jovens dele.

 

E o interesse por música antiga?

Talvez com os meus 10, 11 anos, fui ao Cinema Tivoli fui ver um contratenor inglês muito conhecido chamado Alfred Deller, acompanhado por um alaúdista que era o Desmond Dupré, e aquilo foi uma revelação para mim. Tanto o instrumento, como o canto. As minhas irmãs compraram o disco e lembro-me que, em casa, todos nós a seguir cantávamos Shakespeare e as cantigas do século XVI que ele cantou no concerto. Este interesse reforçou-se quando, em 1969, fui dar concertos à Alemanha e pude comprar um alaúde e ter acesso às partituras antigas – as tablaturas, como se chamava então – da escrita para alaúde. Comecei a trabalhar o instrumento, embora não houvesse nenhum professor em Portugal. Comecei a experimentar, a ler as tablaturas… A partir de 75, começo a construir os meus instrumentos: alaúdes, cítaras e outros. Em 1978, formo o meu grupo de música antiga que se chamava Musica Ficta. Aí nasce a minha vontade de fazer música de câmara e música antiga com instrumentos históricos. Era um movimento muito forte na juventude europeia, tanto em Inglaterra, como França e até em Espanha, mas quase inexistente em Portugal. Pouco tempo depois, vem a Portugal o grande mestre Jordi Savall que, em conjunto com outros professores, vem dar um primeiro curso de verão em Coimbra. Eu fui um dos alunos e tive a possibilidade de contactar, pela primeira vez, com um grandíssimo mestre – um dos maiores do século XX – e aí o meu interesse tornou-se uma opção paralela à prática concertística de guitarra. Já era profissional mas passei a acumular com este projeto de música antiga. Aproveitando o facto de viajar muito e ter acesso aos museus, e às coleções, comecei a interessar-me pelo estudo dos instrumentos antigos – a disciplina chama-se organologia musical. É científica e estuda os instrumentos não só nos aspetos físicos mas de uma forma mais abrangente. Isso abriu uma janela de possibilidades que me permitiu não só reproduzir os instrumentos e a descoberta de que nós portugueses tínhamos uma tradição na arte da violaria que remontava ao século XV. Como houve instrumentos sobreviventes até hoje, isso permitiu formar o grupo La Batalla, sobre o período trovadoresco, e o Concerto Atlântico, especializado na música do renascimento. Festejamos agora os 25 anos do primeiro álbum e apresentando um programa chamado cancioneiro musical manuelino que se dedica à reconstituição da música e dos textos do chamado Século de Ouro. 

 

Que Século de Ouro é este?

Não é um Século de Ouro material mas no valor do saber. Da música e da nossa literatura. Este período é excecional. O Rei D. Manuel era não só um mecenas das artes, como convivia bem com a música. Sabemos através das crónicas não só de Damião de Góis, como de Gaspar Correia, o valor que o Rei dava aos músicos da sua capela. Era condição essencial para um fidalgo, saber, além da esgrima e da caça, de literatura e música. Saber tocar um instrumento. Hoje, há um certo esquecimento mas que é recente. Revisitamos Camões superficialmente. As gerações mais novas não conhecem a lírica, que é uma obra de uma dimensão universal interessantíssima. Não conhecemos a obra dos poetas contemporâneos de Camões, a produção literária que envolve romancistas, cronistas e dramaturgos. É uma pena. Quisemos valorizar este património que não fica atrás do melhor que se fez em Espanha. Só que toda a gente em Espanha conhece a literatura do Século de Ouro. Há coleções inteiras a preços acessíveis. Cá, se quisermos encontrar edições modernas de Sá de Miranda, é muito difícil. Mesmo a obra de Camões, está esgotada há imenso tempo.

 

O seu projeto de vida é preservar a memória?

É preservar e sobretudo valorizar esta memória. Considero que, assim como preservamos os espólios dos museus e falamos muito da necessidade de recuperar, embelezar e revalorizar o património construído, há todo o património imaterial, sem condição física notória, mas que tem um valor extraordinário na nossa definição enquanto povo. Felizmente, ainda hoje temos imensos poetas fantásticos mas se esquecermos os que estiveram antes, dificilmente compreendermos os atuais. Devo ao Dr. Vasco Graça Moura a edição do disco do Concerto Atlântico, que foi apoiado pela Comissão dos Descobrimentos. O período em que existiu a Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses (1986-2002) foi extraordinário de reedição de obras perdidas de grande autores e estudos inéditos, além de exposições. Houve uma chamada de atenção para a riqueza desse período. Quando terminou, esfumou-se o interesse. E hoje, pelo contrário, há um discurso crítico e acéfalo sobre os Descobrimentos e a bondade, ou maldade, dos nossos antepassados ao cruzar o mundo e fazer a primeira globalização. Quando ouço esse discurso, costumo dizer: «como é que não temos consciência que somos todos afrodescendentes?!». Isso está perfeitamente determinado pelos grupos científicos que estudam a arquiogenética em Portugal. A ideia das Descobertas como princípio do uso de escravos é distorcida e ignorante. Os primeiros exemplos de esclavagismo são quase todos afro e anteriores à chegada dos portugueses. Os romanos já faziam isso. Não inventámos a escravatura. Estamos na véspera do ano em que se comemora a primeira viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães. Seria muitíssimo importante que não fossem os espanhóis a gozar os louros todos.

 

Faz música para se sentir dentro desse tempo?

Faço música principalmente para o nosso tempo. Considero que a descoberta da música antiga foi uma das mais extraordinárias, quando se discutia o fim da música tal como tínhamos conhecido – e eu próprio fiz parte dos primeiros interessados na música contemporânea, fui aluno do Jorge Peixinho que era o grande porta-voz da escola de Darmstadt fundada pelo Stockhausen e que tentava uma nova perspetiva revolucionária da música anulando a noção de música, no sentido em que já não haveria emoções e sentimentos mas apenas sons, integrando ruídos. Quer seja a música atual, a antiga ou as minhas composições, faço para partilhar socialmente emoções e ideias. O tal saber que faz parte dessa dimensão imaterial e que é subjacente à prática de um instrumento. Costumo dizer que não há cultura sem cultores. Tem de haver sempre um emissão e um recetor. Não há música sem espectadores, agora a música culta, e o ato de cultura, não é um ato de diversão ou entretenimento. É um ato de interpelação das referências e inteligência das pessoas. 

 

Que público encontra nos concertos?

Não é um público informado nem especializado mas adere à música porque lhe toca diretamente. Sendo uma música de uma certa complexidade técnica – é o período da polifonia em que há a ideia que várias vozes podem existir de forma independente das outras, e, no fundo, há sempre uma interdependência e a possibilidade de ouvir a harmonia e a dissonância. É um prazer enorme, o de perceber a inteligência do discurso musical, que estando fora do discurso atual, é muitíssimo mais acessível. A maioria dos textos eram muitíssimo erudita e, no caso português, ligada à Universidade de Coimbra. Comparo esta música ao maravilhamento quando vemos a Custódia de Belém de Gil Vicente. Naquela peça, encontramos todos os códigos para a leitura daquele período magnífico do Rei D. Manuel. Aquilo está rodeado de histórias extraordinárias. [A peça] descreve o nosso altíssimo nível de ourivesaria. É um gótico tardio excecional tão bom ou melhor do que se fazia na Europa. O que fazemos é revalorizar este repertório para os espectadores atuais com as fontes sonoras da época.

 

A ausência de memória coletiva incomoda-o?

A desvalorização, sobretudo. Interessa-me a valorização da memória para entender o que somos hoje e o que poderemos vir a ser. Hoje, fala-se dos novos estados que perdem a memória. Muitas vezes, porque a ocupação foi feita de forma traumática e em desespero. Quer-se esquecer aquilo que dói. É o que acontece nos EUA e na América latina porque estes povos não conseguiram, na história, guardar memórias anteriores à presença num novo território. Nos períodos de guerra e transição como o atual, tenta esquecer-se e até ocultar a memória. A necessidade de reavivar essas memória passa por podermos fazer escolhas com elas. Estamos onde estamos porque há uma súbita e rápida desvalorização do saber. Isso tem a ver com um modelo de desenvolvimento formatado por uma visão economicista em que se diz às pessoas que o que tem valor é ter e não ser. O ter sem estar associado ao ser não tem valor nenhum. Aliás, escapa todo. A afirmação do «sou bom porque tenho muito» é uma estupidez. Para mim, desvaloriza a dimensão humana que é aquela que me interessa mais. Aliás, o advento da sociedade do entretenimento e da diversão, no fundo a estupidificação de massas, tem ver com o facto de as pessoas pensarem que se elevam socialmente por parecerem os outros.

 

Cultura e entretenimento não têm uma zona de convívio saudável?

Penso que não. O objetivo do entretenimento é divertir. Se formos à génese do termo, divertir significa desviar. Neste caso, desviar as massas para aquilo que lhes está a acontecer. As novas gerações vivem pela primeira vez desde há muitos anos uma interrogação enorme sobre o seu futuro, a precariedade laboral e económica é uma realidade. A família está em desagregação, para os jovens a ideia de território é completamente diferente porque se perdeu a ideia de nação. Da pertença. Circula-se para todo o mundo com a maior das facilidades para todo o lado e qualquer jovem fala cinco línguas. Se não falar, expressa-se universalmente em inglês. E todos sabemos que a indústria do entretenimento se relaciona com a hotelaria e o turismo. O entretenimento tem vindo a esmagar a cultura.