Crónica dos filhos da mãe

De cada vez que escrevo a denunciar um traste de má memória recebo sete ou oito telefonemas a perguntar: «Isto é comigo?»

1. D. Cacilda

 

Com os seus 98 anos, D. Cacilda era a mais velha habitante de uma pacata aldeia de província, pastoreada por um padre que já levava mais de trinta anos na igreja.

No tom coloquial que imprimia às homilias – onde cabiam interpelações inocentes aos fiéis – o bom do padre resolveu, um dia, falar do perdão das ofensas, incentivando os presentes a porem uma pedra sobre antigas quezílias com parentes e vizinhos, e perdoarem os agravos. 

No final da prática, o padre convidou os paroquianos a porem a mão no ar, para sinalizarem a vontade de ‘perdoar a quem os tinha ofendido’. Todos levantaram a mão exceto a anciã, o que fez o sacerdote perguntar-lhe: «Então, D. Cacilda, as ofensas foram assim tão grandes que não consegue perdoar?». Ao que a velha respondeu: «Não é isso. É que os filhos da mãe que me ofenderam já morreram todos».

Se o autor destas linhas estivesse naquela assembleia, também não teria levantado a mão. Não por já terem morrido todos os estupores com quem teve o azar de se cruzar ao longo da vida. Eles estão quase todos vivos, encontra-os com frequência e nunca se furta ao cumprimento, com aparente afabilidade. E não é por ter esquecido as patifarias, nem por bondade intrínseca – apenas faz questão de os olhar nos olhos, para que saibam que as traições não caducam.

 

2. Comunistas…

 

Conta-se que, nos tempos da ditadura militar brasileira, sujeito que denunciasse um comunista recebia um prémio de 1.000 cruzeiros; se denunciasse o segundo, recebia 5.000, por ser um cidadão leal ao regime; se denunciasse o terceiro… ia preso, porque conhecia comunistas a mais.

Lembro a piada com frequência. De cada vez que escrevo a denunciar um traste de má memória recebo sete ou oito telefonemas a perguntar: «Isto é comigo?». E aí dou por mim a pensar: «Olha… afinal havia mais!». 

 

3. Ando muito mal da vista…

 

Virgílio de Sousa foi um prestigiado administrador do Banco Burnay, nos tempos da ‘outra senhora’. Coube-lhe negociar a fusão com o Fonsecas, Santos & Viana e, no final, renunciou a um lugar na nova administração, a favor de um colega mais jovem. Tinha então cerca de 60 anos. 

Na nova condição de reformado, passou a ser frequente vê-lo nas agências do banco a tratar de assuntos pessoais. Quando reconhecido, era efusivamente cumprimentado e cumulado das atenções habitualmente reservadas às pessoas de quem se gosta.

Com as nacionalizações, mudou o contexto e as manifestações de apreço quase sumiram. Poucos eram os que se aproximavam, com receio de serem suspeitos de intimidade com um ‘capitalista’. Num dia em que foi atendido por um empregado que não tinha esses ‘complexos’ foi saudado com o entusiasmo antigo, a que correspondeu com a simpatia de sempre. Mas à pergunta «E como vai a sua saúde?», não se coibiu de mostrar o seu estado de espírito. Calmamente, tirou os óculos, limpou-os com o lenço de bolso, ajustou-os, endireitou as costas e, olhando à volta, respondeu: «A saúde vai bem, ando é muito mal da vista. Sabes? É que só vejo FdP…!».