EUA: umas eleições marcadas no feminino

As eleições intercalares dos Estados Unidos estabeleceram vários marcos históricos. Um recorde de mulheres eleitas, entre elas duas muçulmanas, duas americanas nativas, uma lusodescendente e a mais jovem de sempre: 29 anos.

Mesmo não sendo a onda azul que os democratas desejavam, como mensagem direta para o Presidente Donald Trump – que é certo perdeu o controlo da Câmara dos Representantes, mas reforçou o peso  no Senado –, as eleições intercalares de terça-feira nos Estados Unidos ficaram marcadas por diversos feitos históricos, desde logo pelo reforço do peso das mulheres. A possibilidade de os republicanos perderem o Senado era pequena, porque enquanto se mudaram todos os 435 lugares da Câmara, só 35 dos 100 lugares do Senado estavam em disputa e 26 deles já estavam ocupados por democratas. A Câmara dos Representantes era mais previsível (é a terceira vez em 12 anos) e veio a acontecer, com um peso substancial feminino, entre candidatas eleitas e no peso do eleitorado. 

O resultado permitiu, no entanto ao Presidente Donald Trump congratular-se com os resultados na rede social Twitter: «Grande sucesso esta noite. Obrigado a todos!», acrescentando que «os que trabalharam comigo nesta incrível eleição intercalar e que adotaram determinadas políticas e princípios, estiveram muito bem. Os que não o fizeram, podem dizer adeus».

Apesar de esta ter sido a eleição intercalar mais participada, com níveis de comparência nas urnas que não se viam há mais de 50 anos, as novidades estão no perfil dos candidatos a conseguirem um assento no Congresso norte-americano: democratas, mulheres, homossexuais assumidos e gente com percurso peculiar.

Agora, na Câmara dos Representantes haverá mais diversidade e, sobretudo, mais mulheres. Das 237 candidatas pelos principais partidos, número recorde, pelos menos 100 conseguiram ser eleitas (ainda havia contagens a ser realizadas no final da semana). Esta é a mais alta representação feminina de sempre, acima do máximo anterior de 85. De todas as mulheres, destacam-se seis pelas suas características. Entre elas estão as primeiras congressistas muçulmanas a ser eleitas para o Congresso. Rashida Tlaib e Ihan Omar já estão a fazer história ao garantir o seu lugar com percentagens de 88,7% e 78,2%, respetivamente. Também a mulher mais jovem a ser eleita para o Congresso está a fazer-se notar. Com apenas 29 anos, Alexandria Ocasio-Cortez conquistou 78% dos votos no 14.º distrito de Nova Iorque, derrotando o republicano Anthony Pappas. Ainda a assinalar os marcos importantes da política norte-americana, estão Sharice Davids e Deb Haaland, as primeiras americanas nativas a ganhar a corrida, com 53% e 59,1% dos votos, respetivamente.

A democrata Pressley foi uma das pioneiras: é a primeira negra eleita congressista pelo Massachussetts. Mas não ficou sozinha. Também Jahana Hayes foi a primeira mulher negra eleita para o Congresso pelo estado do Connecticut. 

No Tennessee, a republicana Marsha Blackburn tornou-se a primeira mulher senadora no estado. Isto apesar de cantora Taylor Swift, natural do estado, ter vindo a público apelar ao voto contra ela e a favor do candidato democrata.
Além da clara vitória das mulheres, os EUA elegeram ainda o primeiro governador assumidamente gay no Colorado. Jared Polis, cumpriu cinco mandatos no Congresso e derrotou agora o republicano Walter Stapleton por seis pontos percentuais. 

Os lusodescendentes também não passaram despercebidos nestas eleições intercalares. Lori Trahan foi eleita para a câmara dos Representantes do Congresso americano pelo 3.º distrito do Massachusetts com 61,9%. Tornando-se na primeira luso-descendente a servir na Câmara dos Representantes.

Sharice Davids

Americana nativa, assumidamente lésbica e defensora dos direitos LGBTI, Sharice Davids, eleita para a Câmara dos Representantes pelo Kansas, chegou para fazer história. Uma verdadeira mulher de armas. Sem a presença do pai, cresceu apenas com a mãe, uma veterana do Exército norte-americano que deixou as Forças Armadas depois de 20 anos de colaboração para seguir carreira civil no US Postal Service, o serviço de correios dos EUA. 

A democrata concluiu a licenciatura em Direito na Universidade do Missouri e, ainda durante os tempos de faculdade, começou a dedicar-se às lutas de Mixed Martial Arts. Ao The Guardian, Davids explicou que começou a praticar desporto muito tarde, justamente por ter sido criada apenas pela mãe. «Era muito caro para mim pagar aulas de artes marciais», disse. Depois de formada teve aulas de capoeira, karaté e mais tarde taekwondo. Em 2006 participou na primeira luta oficial, que acabou por vencer em 44 segundos. Passados dez anos e depois de muitas lutas, as primeira derrotas abriram os olhos de Davids para outras questões. 

Deixou a carreira desportiva de lado e começou a viajar pelos Estados Unidos para realizar vários trabalhos junto das comunidades indígenas. Em 2016, Sharice Davids foi selecionada para participar num programa em colaboração com a Casa Branca. Em pouco tempo descobriu a sua vocação e percebeu que a política poderia ser o seu caminho. Agora, a história da advogada de 38 anos que descobriu tarde a política e se tornou agora congressista serve como um símbolo da rutura das barreiras na política norte-americana e das aspirações dos americanos nativos.

Deb Haaland

Como indígena, defende as terras sagradas. Como mulher, defende o aborto. Como mãe solteira, um percurso escolar gratuito e para todos. Como trabalhadora, um salário mínimo de 15 dólares à hora. Como minoria, quer igualdade nos direitos civis. Deb Haaland é membro da tribo Laguna Pueblo, uma das 566 tribos reconhecidas pelos EUA e, além de ser mãe solteira, é ativista de longa data que faz campanha pelo impeachment de Trump. Liderou o Partido Democrata do Novo México entre 2015 e 2017 e é responsável pelo voto dos indígenas na vitória de Barack Obama há seis anos, onde trabalhou como diretora para o voto dos nativos do Novo México. 

Os ideias democratas não foram incutidos em casa, já que, apesar de não serem ativos politicamente, os pais de Haaland eram republicanos. A mãe sempre se dedicou à família, o pai foi militar com 30 anos de serviço e veterano na guerra do Vietname. Em 2014, a mãe registou-se como democrata para votar na filha, quando esta se candidatou, sem êxito, a vice-governadora do Novo México. 

Durante a adolescência, Haaland viveu em nove cidades e cada um dos quatro irmãos nasceu num sítio diferente da Califórnia. A nova congressista, terceira filha, nasceu em Winslow, no Arizona, onde viveram e trabalharam os avós. Depois de concluir o ensino secundário, passando por 13 escolas públicas, Haaland trabalhou numa padaria, enquanto estudava na Faculdade de Direito da Universidade do Novo México e foi mãe. «Sou  mãe solteira e sei o que é decidir entre pagar o aluguer da casa ou comprar comida. Precisamos de pessoas que conheçam essas coisas», disse Haaland.

Rashida Tlaib

A primeira palestino-americana a alcançar um assento na Cãmara dos Representantes dos Estados Unidos. Rashida Tlaib nasceu em Detroit, é filha de pais imigrantes palestinianos e foi eleita pelo Michigan, onde o partido Republicano não tinha candidato. Tlaib vai agora substituir John Conyers que renunciou ao cargo na sequência de acusações de assédio sexual a funcionárias. De 2009 a 2014 trabalhou na Câmara de Michigan e foi a primeira muçulmana a ocupar uma posição política. Durante esses anos conseguiu criar um fundo de um milhão de dólares para clínicas de saúde comunitárias gratuitas.

Com 42 anos, Rashida Tlaib é a mais velha de 14 irmãos. De todos, foi a primeira a conseguir entrar na faculdade para frequentar a licenciatura de Direito. Em 2008 fez história e tornou-se na primeira mulher muçulmana a entrar no parlamento estadual do Michigan. Hoje assume-se como uma palestiniana orgulhosa, posiciona-se contra Trump e defende as causas das classes mais pobres. 

Depois da vitória, com a mãe ao lado, lembrou a família que está na Cisjordânia e que Tlaib faz questão de seguir o seu percurso de perto. Este ano, um número recorde de 90 muçulmanos competiu nas eleições, algo que não se via desde os atentados de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center e o Pentágono, segundo a Jetpac, organização que ajuda os muçulmanos a concorrer a cargos políticos.

Quanto às propostas políticas, segue a linha de Ilham Omar, sendo que as duas integram um movimento progressista que pretende implementar o salário mínimo de 15 dólares por hora e a abolição do Serviço de Imigração e Controlo Alfandegário.

Ilhan Omar

Usa hijab, é democrata e nasceu em Mogadíscio, capital da Somália, um dos países que está na lista do veto migratório dos EUA, ou seja, hoje os refugiados somalis não podem entrar no país, na sequência de uma decisão do presidente Donald Trump. Chegou aos Estados Unidos com 14 anos, como refugiada, depois de fugir com a  família da Guerra Civil que devastou a Somália e de viver durante quatro anos num campo de refugiados no Quénia. Ilham Omar conseguiu agora um lugar na Câmara dos Representantes através de um círculo maioritariamente democrata no Minnesota. Com 36 anos, vai substituir Keith Ellison, o primeiro muçulmano eleito para o Congresso em 2006. 

O seu percurso também a ajudou a conquistar os votos dos eleitores. Quando chegou aos EUA, em 1991, aprendeu inglês em apenas três meses e hoje é licenciada em Ciência Política e Estudos Internacionais. A sua carreira profissional iniciou-se como educadora nutricional na Universidade de Minnesota, cargo que exerceu durante três anos. Em 2016, ganhou um assento na Assembleia Estadual, tornando-se a primeira deputada somali-americana no país. Já antes, Omar tinha trabalhado como organizadora da comunidade para os líderes municipais de Mineápolis e como líder do grupo de direitos civis afro-americanos, NAACP. 

Ativista, mãe de três filhos, antes das últimas eleições, exercia o cargo de diretora de iniciativas políticas na organização que fundou, a Women for Women International, um organização não governamental dedicada a apoiar mulheres estrangeiras na sua integração nas comunidades quando chegam aos Estados Unidos.

Alexandria Ocasio-Cortez

Há um ano podíamos encontrar Alexandria Ocasio-Cortez a trabalhar ao balcão de um restaurante em Manhattan. Hoje é a mais jovem congressista eleita da História dos Estados Unidos e, a partir de janeiro vamos encontrá-la em Washington a representar o 14.º distrito de Nova Iorque. Ocasio-Cortez tem 29 anos, é de origem porto-riquenha e natural do Bronx. Nas últimas eleições intercalares arrasou com a percentagem de 78% dos votos no seu distrito eleitoral, batendo o republicano Anthony Pappas. Nas primárias do Partido Democrata para escolher o candidato do 14.º círculo eleitoral de Nova Iorque, a jovem latina derrotara Joseph Crowley, um congressista que não tinha concorrente às primárias desde 2004. Joe Crowley, de 56 anos, era um peso-pesado entre os democratas, apontado como possível sucessor de Nancy Pelosi na liderança da bancada democrata na Câmara dos Representantes. 

A mãe de Alexandria Ocasio-Cortez, porto-riquenha, é empregada de limpeza, o pai, americano nascido no Bronx, faleceu há dez anos, quando a crise económica eclodia, o que obrigou Alexandria a ter de trabalhar em bares e restaurantes para ajudar a família.

Formada em Economia e Relações Internacionais pela Universidade de Boston, sempre foi politicamente ativa. Apesar de nunca ter concorrido a qualquer cargo eletivo, participou na campanha eleitoral de Bernie Sanders (que disputou com Hillary Clinton a nomeação democrata à presidência), trabalhou com o senador Ted Kennedy e foi diretora do Instituto Nacional Hispânico. Com pouco dinheiro, a campanha de Ocasio-Cortez foi feita sobretudo a partir das redes sociais.

Lori Trahan

Pela primeira vez na história dos EUA, uma lusodescendente ganhou um lugar na Câmara dos Representantes. Lori Trahan (Loureiro de apelido de solteira) defende a igualdade de género, o aumento da participação política das mulheres e medidas de proteção financeiras para as famílias. Neta de um imigrante português e de uma imigrante brasileira, Trahan nasceu no Estado de Massachusetts, onde agora ocupa um cargo federal para o qual concorreu pela primeira vez. 
Apesar de residente em Westford, nasceu e cresceu em Lowell, cidade com uma histórica comunidade portuguesa de raízes açorianas e onde Lori aprendeu a lutar pelos valores familiares.

Entre 1995 e 2005 fez parte da equipa de Marty Meehan, membro da Câmara dos Representantes. Profissional de marketing e consultoria, Lori Trahan, de 44 anos, estudou na Universidade de Harvard e é CEO da Concire Leadership Institute, uma empresa dedicada à organização empresarial.

No dia das eleições intercalares, no seu discurso de vitória, a lusodescendente relembrou que o pai foi um metalúrgico sindicalizado, que a mãe trabalhava nas limpezas e que ambos trabalharam arduamente para manter e educar as três filhas.

E a primeira mulher lusodescendente no Congresso também não esqueceu os avós: «Os meus avós, imigrantes de Portugal, iriam ficar muito orgulhosos. A minha avó trabalhou nas fábricas de têxteis, o meu avô foi carpinteiro profissional, eles não iriam acreditar que duas gerações mais tarde a sua neta iria ser a primeira luso-americana na Câmara dos Representantes da América», afirmou a política democrata.