‘As mulheres não são assim tão fáceis de oprimir’

Jordan Peterson, o psicólogo que se tornou uma estrela mundial graças ao YouTube, tem alimentado sucessivas polémicas com feministas.

‘As mulheres não são assim tão fáceis de oprimir’

Alto e magro, de cabelo grisalho ligeiramente despenteado, Jordan Peterson anda com passadas enérgicas. Veste com um toque de modernidade: blazer às pintinhas, camisa sem gravata, calças justas que deixam à vista as meias encarnadas e sapatos de fivela. Enquanto conversa, gesticula não apenas com as mãos e os braços, mas também com os dedos em movimentos rápidos.

Apologista da família e da responsabilidade individual, Peterson tornou-se uma voz crítica do politicamente correto e de certas correntes feministas e LGBT. As suas posições claras e bem fundamentadas conquistaram admiradores em todo o mundo. Mas também há quem o odeie. «Durante um ano e meio andei no fio da navalha. Se dissesse alguma coisa que não devia estava acabado», confessa-nos.

Aos 56 anos, o psicólogo canadiano passou por Portugal para dar uma conferência na Nova de Carcavelos e promover o livro 12 Regras para a Vida – Um Antídoto para o Caos (ed. Lua de Papel).

Momentos antes da entrevista, telefona à mulher para combinar o jantar. «Ela viaja sempre comigo», explica. «Preciso de alguém que esteja atento a tudo. E funciona». Dada a quantidade de solicitações, a vida de Peterson é uma espécie de corrida contra o tempo. Mas ele não se queixa e garante que, apesar do stress e da responsabilidade, «não voltaria atrás». Como ele defende, «a felicidade é um objetivo errado».

 

Escolheu para título do seu livro ‘12 Regras para a vida – um antídoto para o caos’. Acha que ‘caos’ é a palavra que define melhor os tempos que vivemos?

Não necessariamente. Já houve tempos muito mais caóticos no passado. Mas o caos em excesso é uma das ameaças existenciais permanentes. Se pensar no caos como incerteza ou complexidade, especialmente se surgir acidentalmente, é uma fonte constante de problemas. A depressão, a ansiedade, o desespero, o niilismo, todos eles são característicos de excesso de caos. Se estivermos enredados nesse submundo, simbolicamente falando, precisamos de uma porta de saída. Isso pode ser encontrado na ordem mas um equilíbrio entre a ordem e o caos pode ser uma solução mais duradoura. O livro que estou agora a escrever tem o título provisório Para lá da mera ordem – mais doze regras para a vida. Porque também há patologias relacionadas com o ecesso de ordem – o aborrecimento, por exemplo, a frustração, a sensação de estar confinado ou abafado. Esse é outro problema existencial.

Então essa referência ao caos não é sobre o que vê à sua volta?

Também é, porque há sempre coisas caóticas a acontecer. A humanidade está cheia de histórias apocalípticas e de previsões apocalípticas. E a razão para isso é que em qualquer altura podemos bater no fundo. Pode ser por causa da nossa vida, da vida dos nossos filhos, a sociedade pode tornar-se caótica de um momento para o outro. É mais correto pensar nisso como algo que está sempre presente. Nós temos sorte, neste momento não há muito caos. Olhe à sua volta: não há surtos de peste, pelo menos aqui, não há pessoas a morrer à fome, não há guerra. Se Deus quiser, continuará assim.

Mesmo assim algumas pessoas acham que a nossa civilização está em declínio, se não mesmo a cometer suicídio. Tem um olhar pessimista em relação à nossa época?

Não. Acho que… como é aquele velho ditado chinês? ‘Que possas viver tempos interessantes’. Os tempos que vivemos são sumamente interessantes porque o horizonte de possibilidades que se abre à nossa frente está a expandir-se rapidamente. E as coisas podem rapidamente tornar-se muito piores ou muito melhores. Diria que, no conjunto, apesar de enormes passos em falso no século XX, as coisas estão agora muito melhores do que estavam há 150 anos. Apesar do que se passou na Alemanha nazi, na União Soviética e na China de Mao e todas as catástrofes do século XX, até ver os ‘bons’ têm vencido e tenho fé de que possamos continuar assim. Por isso não estou pessimista. Diria que estou apreensivo. Uma das coisas que aprendi ao ler Carl Jung foi que o aumento das tecnologias requer um aumento de consciência por parte de quem as usa. Temos de ser sábios para lidar com isso porque de outra forma pode descambar. Repare, não queremos pôr uma metralhadora nas mãos de uma criança. Estamos num ponto em que um só indivíduo já pode causar bastantes estragos se assim o entender. Por isso, quanto maiores as potencialidades, mais alerta devemos estar.

Como é a sua relação com a tecnologia? É um entusiasta?

Desde cedo que adotei as novas tecnologias. Parte da razão por que me tornei conhecido foi por ter tido um sucesso tremendo no YouTube. Tento manter-me a par e quando aparece uma nova tecnologia que pareça ter potencial procuro familiarizar-me com ela. Uso blogues, o twitter, o Facebook, tenho um canal no YouTube, tento explorar todas essas possibilidades. Tenho uma empresa de software que disponibiliza apoio psicológico de alta qualidade a baixo custo. Para um velhote, tento manter-me a par.

Você não é velho…

Tenho 56 anos, sou velho o suficiente. Em geral, as pessoas com 50 e muitos já estão fora da ‘janela’ da alta tecnologia.

Ainda dá consultas de psicologia?

Não, tive de parar há cerca de um ano e meio.

Porquê? Não tinha tempo?

A primeira razão foi que na altura estava a enfrentar um problema de saúde [uma síndrome autoimune]. A segunda razão foi que o meu tempo se tornou tão fragmentado que tive medo de cometer um erro. E também sabia que podia não estar presente quando precisassem de mim – porque se vais ajudar pessoas a resolverem problemas complicados tens de estar presente. Tornou-se impossível continuar.

Gostava de dar consultas?

Gostava imenso. O que faço agora não é assim tão diferente, porque continuo a interagir com as pessoas numa base diária. As minhas palestras focam-se sempre em temas psicológicos, portanto é uma prática clínica numa escala maciça. Isso é tão recompensador como uma consulta individual. Sinto falta dos meus pacientes, até porque me tornei próximo de muitos deles, mas já não era sustentável.

Qual era o tipo de problemas que os pacientes lhe traziam?

Variavam muito. Tinha uma vertente de consultoria e aí havia um conjunto de clientes que eram pessoas muito bem-sucedidas, que trabalhavam em grandes escritórios de advogados ou em grandes empresas, pessoas que estavam no topo das suas profissões. Ajudava-os a gerir as suas vidas complicadas de uma forma mais produtiva e gratificante. Às vezes pediam-me conselhos sobre a vida matrimonial, outras vezes sobre o planeamento estratégico dos negócios ou então limitavam-se a expor os seus problemas e eu tentava ajudar a atravessá-los. Ainda havia casos de pessoas que trabalhavam demasiado e queriam gerir melhor o seu tempo e outras que tinham problemas relacionais nos empregos. Além desses clientes, tinha pessoas que sofriam de esquizofrenia, doença obsessivo-compulsiva, ansiedade, depressão. Esses eram os mais comuns, e depois uma mão-cheia de distúrbios mais raros, como anorexia nervosa, distúrbios de personalidade – todo o leque de patologias. E curiosamente tinha um número desproporcional de pessoas criativas.

Artistas?

Arquitetos, escritores ou pessoas que nem trabalhavam necessariamente numa profissão criativa mas tinham um temperamento criativo. Pessoas que tinham sonhos muito sofisticados. Tive um paciente com quem trabalhei durante muito tempo que sonhava três vezes por noite e conseguia lembrar-se de todos os sonhos. Vi 20 pessoas por semana ao longo de 25 anos, portanto era muito variado.

À medida que se tornou mais conhecido o perfil dos seus pacientes foi-se alterando?

Acho que à medida que me tornei mais conhecido tornou-se cada vez mais fácil encontrar clientes, e é possível que as consultas tenham pendido para pessoas que tinham menos problemas ou problemas menos graves, que queriam melhorar as suas vidas. Mas isso foi uma mudança gradual.

Soube pelas notícias que recentemente o Senado do Canadá aprovou uma lei para tornar o hino nacional neutro em termos de género.

Pois…

Acha que essa alteração é apenas uma questão de semântica, ou é mais do que isso?

Acho que o nosso primeiro-ministro fez isso porque não teve imaginação para fazer alguma coisa mais útil. O nosso último orçamento foi organizado em torno do princípio de que a questão mais importante no Canadá era a diferença de salário entre géneros [gender equity pay gap]. O nosso primeiro-ministro não é uma pessoa particularmente competente e por isso em vez de se dedicar à solução de problemas complexos limita-se a esse tipo de ajustes ideológicos.

Considera essa mudança uma perda de tempo?

É só uma medida para fazer boa figura, não é uma questão substancial. Aliás, o hino canadiano não podia ser mais inofensivo. Se vocês soubessem como o Canadá é um país engraçado… De dois em dois anos o governo muda o hino para o tornar politicamente correto, por isso já ninguém o sabe cantar. Os canadianos põem-se em pé, cantam duas frases e depois começam a balbuciar porque já ninguém conhece a letra. É positivamente absurdo, até porque já era um hino completamente inofensivo. Essa mudança resulta de uma posição ideológica e é exatamente o tipo de coisa que fazes quando não queres enfrentar questões difíceis. O Canadá tem um problema sério de produtividade, por exemplo. Os americanos estão a distanciar-se em termos de nível de vida. Temos um problema terrível relativo à proteção da propriedade intelectual. Não podemos extrair petróleo de Alberta porque está separado do mar pela Colúmbia Britânica, e as duas províncias não se entendem. Há muitos problemas no Canadá que mereciam atenção.

Pensava que as pessoas viviam muito bem no Canadá.

E vivemos. É um belo país. Mas é preciso ir fazendo uma boa manutenção para o manter no bom caminho. E a favor de Trudeau tenho de dizer que não fez nada de catastrófico. A economia está a avançar bastante bem. Nos dias que correm, se um político não for um desastre já nos podemos dar por satisfeitos. Isso é também o que penso sobre Trump. Houve muitas guerras injustas nos últimos 20 anos, especialmente no Médio Oriente, e algumas atingiram a Europa em cheio. O facto de Trump não nos ter embrulhado em mais um conflito disparatado no Médio Oriente é qualquer coisa, não é? Sou suficientemente conservador na minha orientação política para ficar contente quando um político consegue não estar abaixo do nível médio de incompetência. Há muitas coisas que Trudeau fez com as quais eu não concordo mas o governo dele não tem sido de modo nenhum uma catástrofe. Hurra!

Quando é que se apercebeu de que o politicamente correto estava a tornar-se um problema?

1993. Quando eu estudava em Harvard, o politicamente correto era um verdadeiro espinho encravado. Mas pensava que o assunto tinha ficado arrumado entretanto, quando há três ou quatro anos alguma coisa voltou a mudar – não sei exatamente o quê – e voltou a tornar-se um problema sério, especialmente nos campus universitários. E chegámos a um ponto os professores politicamente corretos têm um efeito desproporcional nas políticas seguidas. O que suspeito é que em parte o ativismo do politicamente correto foi subsidiado ao longo de 40 anos de maneira a que uma minoria ativa e bem organizada – a Atlantic Monthly, a revista de ciência política, fala de 7% na extrema-esquerda – é o suficiente para ter um impacto desproporcional. Isso é o que está a acontecer nas universidades e não é bom.

Quem lucra com isso? Essa pequena minoria?

[reflete durante alguns segundos] Nunca sabemos quanto ruído extremo é necessário para fazer pequenos ajustes. Se olhar para o movimento LGBT, ao longo de 20 anos transformaram com sucesso a nossa sociedade numa nova ordem social que deu aos homossexuais o direito de se casarem. Penso que mesmo de um ponto de vista conservador se pode argumentar que isso foi um avanço aceitável, mas não sei quanta agitação disparatada foi necessária para produzir esse resultado. É difícil dizer quem beneficia. Na minha opinião as coisas já foram demasiado longe. As humanidades degeneraram num conjunto de formulações ideológicas da esquerda radical, o que minou a sua verdadeira função, que é ligar as pessoas ao passado. E isso constitui uma verdadeira ameaça à integridade das universidades porque não acho que possam aguentar-se sem as humanidades. As humanidades são o verdadeiro coração da universidade e estão a ser tomadas por convicções ideológicas, o que não é vantajoso para ninguém, a não ser, suponho, para as pessoas que praticam esse simulacro de pensamento.

O que mais o irrita no politicamente correto?

A insistência de que a categoria suprema do ser humano é a identidade de grupo. Isso para mim não é aceitável. É uma regressão a uma forma contraproducente de tribalismo. Acho que isso desune as pessoas, enfraquece os indivíduos, piora as suas vidas e vira as pessoas umas contra os outras. Além de perigoso, é profundamente ingrato e pouco rigoroso. Não me parece que a forma mais adequada de contar a história da relação entre homens e mulheres seja falando de poder e de subjugação. Construir o que aconteceu entre homens e mulheres noutros termos que não uma cooperação fundamental é uma perspetiva muito maldosa, cínica e mal informada da realidade. E não é bom para ninguém – não ajuda os homens, porque faz deles opressores patriarcais, e não ajuda as mulheres, porque faz delas vítimas perpétuas. As mulheres não são assim tão fáceis de oprimir. E também são responsáveis. Para o bem e para o mal, não foram apenas os homens a construir a nossa civilização. É isso que me irrita: a mentalidade redutora. Podemos aprender os três ou quatro ‘ismos’ [machismo, racismo, sexismo, etc.] do pensamento politicamente correto numa semana e temos a solução para qualquer problema. Não é útil, porque a maioria dos problemas são multidimensionais. Culpar a hierarquia e o capitalismo… meu Deus, não há desculpa para isso. Sim, as nossas sociedades têm problemas, porque numa estrutura hierárquica temos uma maioria das pessoas a fazer a maior parte do trabalho produtivo e uma pequena minoria a apropriar-se da maior parte dos lucros. As pessoas na base são desapossadas e isso é um problema. Mas atribuir a culpa ao capitalismo… Isso poderia pegar há 150 anos, hoje já não é uma teoria aceitável.

Tem 1,5 milhões de seguidores no YouTube. Gosta de ser popular?

Encaro isso como um privilégio e uma honra. Não sei se posso dizer que gosto… É muito exigente. Não perderia esta oportunidade, mas é uma responsabilidade louca. Essas pessoas esperam de mim um certo tipo de conteúdos e portanto tenho de o produzir, o que é uma obrigação tremenda. Tudo bem, porque as obrigações também dão sentido à nossa vida. Mas é ridiculamente exigente, a minha vida é uma aventura insana. Por exemplo, só temos mais cinco minutos de entrevista. Porquê cinco minutos? Porque tenho de jantar às cinco, para poder descansar das cinco e um quarto às cinco e meia e depois estar pronto para ir falar para mil pessoas. Todos os dias são assim. E há dois anos que isto se repete. Mas ninguém no seu perfeito juízo se queixaria disso porque é tão ridiculamente estimulante, é uma aventura cheia de possibilidades, mas também é esgotante. Requer uma grande dose de concentração e esforço mental. Mas tudo bem.

Sentia-se mais feliz antes de se tornar uma celebridade?

É complicado, porque também tive vários problemas de saúde que coincidiram com tudo isto. Antes a minha vida já era complicada, porque tenho uma carreira como professor universitário, uma carreira como psicólogo clínico, geria um negócio e ainda estava a escrever um livro. Desde 1985 que ando muito ocupado. Isto [a celebridade] elevou a exigência a um novo patamar. Mas não voltaria atrás. Como defendo no livro, a felicidade é um objetivo errado. Viver uma aventura é um bom objetivo, é o melhor que podemos desejar. E isto é definitivamente uma aventura, uma aventura louca, leva-me ao limite. Tem coisas excelentes e tem coisas muito perigosas. Agora está melhor, mas durante um ano e meio andei no fio da navalha, se dissesse alguma coisa que não devia estava acabado. Isso mantém-nos alerta.

Ontem um amigo que não sabia que eu ia entrevistá-lo disse-me: ‘Vem a Portugal um grande guru do movimento conservador’. Agrada-lhe que as pessoas o vejam como um paladino dos valores conservadores?

As pessoas que olham para mim como um paladino dos valores conservadores são em geral pessoas que estão muito à esquerda no espectro político. Por isso acham que qualquer um que seja um socialista democrático já é demasiado conservador. A definição do que é um conservador, especialmente na América do Norte, mas também na Europa, alterou-se substancialmente nos últimos cinco anos. Muitas das pessoas com quem eu falo foram democratas a vida toda até que os democratas se deslocaram tanto para a esquerda que os deixaram de fora. A maioria das opiniões de que sou um conservador vêm de pessoas da esquerda radical porque acham que assim podem descartar as minhas críticas.

Não se vê como um conservador.

Nunca vi. Pode dizer-se que sou conservador neste sentido: acredito na lei das consequências imprevistas [princípio formulado pelo sociólogo norte-americano Robert K. Merton, segundo o qual qualquer ação humana tem consequências que não faziam parte dos planos]. Aprendi como cientista social que: a) Os problemas são mais complicado do que pensamos; b) As soluções são mais difíceis de conceber do que pensamos; c) Se implementarmos uma solução, ela provavelmente não vai produzir o efeito que esperávamos, por isso é melhor monitorizar o resultado; d) Deve-se ensaiar numa escala pequena antes de se generalizar. São ideias conservadoras mas também são ideias que caracterizam o cientista social que fez o seu trabalho de casa. O que percebemos nos últimos 75 anos é que sistemas complexos comportam-se de formas que não podemos prever, por isso temos de ser muito cautelosos quando intervimos. Por exemplo, esta ideia de que devemos dar uma educação indiferenciada do ponto de vista do género [gender neutral] às crianças. Não se lança uma experiência dessas à escala nacional só porque achamos que sabemos que vai acontecer. Isso não é liberal ou progressista. É apenas ignorante e arrogante.

Irresponsável?

Sem dúvida. Para começar porque ninguém sabe como fazê-lo. Como é que se interage com uma criança de uma forma neutra do ponto de vista do género? Vai-se privá-la de brinquedos? Isso é a teoria deles. É tão pouco sofisticado! Nesse sentido sou conservador.