Malhar em ferro frio…

O BE perfilou-se para o Governo, esquecendo-se do que disse de Daniel Oliveira, Ana Drago ou Rui Tavares

Apolítica portuguesa é fértil em ‘clichés’ e em mudanças de conceitos éticos e ideológicos, consoante a oportunidade e as circunstâncias. Eduardo Ferro Rodrigues, por exemplo, com a clarividência que o caracteriza, veio declarar ao Expresso que há que banir «procedimentos lesivos da credibilidade de qualquer deputado».

Referia-se, concretamente, à rábula de dois deputados do PSD que partilharam passwords informáticas, o que permitiu a um deles, «inadvertidamente», marcar presença ao outro em falta no hemiciclo. Uma «questiúncula», no dizer pitoresco de Rui Rio, ainda líder social-democrata, que passou a exprimir-se em alemão quando quis aliviar-se de embaraços diante de jornalistas portugueses. Uma originalidade.

 

Menos original foi Catarina Martins que, em nome dos desejos do Bloco, veio declarar no congresso da agremiação que «estaremos no Governo quando o povo quiser».   

Tem mais picante do que o «banho de ética» que Rui Rio deitou pelo cano ao proteger José Silvano, outro homem do norte, autor do ‘truque’ para encobrir as faltas parlamentares que tanto incomodaram Ferro, ao contrário do que aconteceu com Carlos César, o líder açoriano da bancada socialista, envolvido na polémica dos reembolsos das viagens à região autónoma, onde tem residência.   

Catarina esqueceu-se, porém, que estava a plagiar o líder histórico dos vizinhos do lado. Se recuarmos à década de 70, vamos descobrir Álvaro Cunhal, numa conferência do partido, a declarar que «no dia em que o povo português decidir que o PCP faz parte do Governo, o PCP fará parte desse Governo».

Mesmo descontada toda a admiração que possa ter nutrido por Cunhal, não ficou bem a Catarina repetir, quase ipsis verbis, o que ele então disse, sem citar o autor.

O Bloco agora fia mais fino. E na ânsia de ter poiso garantido em futuro Governo, já omite as suas ‘azias’ mais conhecidas – contra a União Europeia, o euro, a NATO, ou o capitalismo e a propriedade privada.

 

Quando simulou em 2012 uma retirada da liderança do Bloco, vexado pelo seu humilhante resultado eleitoral, Francisco Louçã nomeou uma anacrónica direção bicéfala, com ele a exercer a tutela nos bastidores. Não durou muito. 

O Bloco é uma espécie de ‘tabopan’, aglomerado de várias camadas de gente de extrema-esquerda, entre maoistas a trotskistas que encontraram ali refúgio. Por isso, quando as coisas deram para o torto, depressa se revelou um ‘saco de gatos’ assanhados.

Louçã não foi meigo, e vituperou os dissidentes como se fossem uns ‘troca-tintas’, acusando-os de desertarem para se fazerem ao regaço de um Governo PS. E não se inibiu sequer de destratar Ana Drago, Daniel Oliveira ou Rui Tavares, como se fossem peste.

Mas, quer Louçã quer a discípula Catarina, confiam na falta de memória coletiva e não prezam muito a coerência, beneficiários também da costumada benevolência dos media, que os seguem acriticamente. 

Ao mandarem ‘às malvas’ os princípios, não só meteram na gaveta as bandeiras da ‘reestruturação da dívida’ (vulgo, ‘não pagamos’), ou da saída da moeda única (que animou as tertúlias de Marisa Matias em Bruxelas e Estrasburgo), como incorrem no mesmo pecado que apontaram aos dissidentes e à «velocidade alucinante» com que mudaram de posição.

Louçã gosta de historietas infantojuvenis. Comparou nessa época os dissidentes aos Cinco na Ilha do Tesouro. E entretém, agora, os netos com a Toy Story, para se mostrar avô extremoso – imitando ainda Cunhal que um dia, inopinadamente, resolveu mostrar fotos da filha e dos netos, com o mesmo objetivo de ‘humanizar’ o personagem.  

Diz o povo que ‘com papas e bolos se enganam os tolos’. E Louçã segue o ditado à risca. É plasticina – e um malabarista da palavra, para quem os fins justificam os meios. 

Retomou o púlpito na Convenção do Bloco com ar messiânico, já reciclado de derrotas passadas, para proclamar que os «rufias tomaram conta da direita». Esqueceu-se, porém, de mencionar os ‘rufias da esquerda’. 

 

O Bloco ficou bipolar. Forjou compostura para se aproximar do poder, sem assustar o PS nem os eleitores moderados. Em contrapartida, radicalizou o discurso à direita, para condicionar quem não se reveja no seu credo neocomunista.

O mesmo partido que arrumou na gaveta a ‘casinha de Robles’, destinada à especulação imobiliária em Alfama, voltou a reclamar-se de uma virgindade perdida, enquanto oferece as alianças para um ‘casamento’ com o PS – se este não quiser (ou não puder) viver sozinho.

Os ‘fascismos’, ‘reacionaríssimos’ e outros ‘ismos’ voltaram em força, agora com as vestes académicas do Bloco, que não se confundem com o fato-macaco do ‘pessoal da ferrugem’ do PCP.

Como é costume, António Costa finge não dar por nada. É a força das suas fraquezas.