Califórnia O mais mortífero incêndio não dá descanso

Há vários dias que a Califórnia, nos Estados Unidos, é palco de dois incêndios de grandes proporções. Pelo menos 50 pessoas perderam a vida e mais de 100 continuam desaparecidas. Três centenas de milhares de pessoas foram deslocadas. Paradise, cidade no norte do estado, desapareceu do mapa

Califórnia  O mais mortífero incêndio não dá descanso

Há sempre quem negue a existência das alterações climáticas, mas os sinais são cada vez mais evidentes: não só existem  como vieram para ficar. Quando dois dos maiores incêndios alguma vez registados na Califórnia, nos Estados Unidos, continuam a lavrar, o presidente norte-americano, Donald Trump, atribuiu as responsabilidades das calamidades e das «muitas vidas perdidas» à «enorme má gestão florestal». «Solução agora, ou nenhum pagamento federal», escreveu Trump no Twitter. As reações não se fizeram esperar e um delas veio de uma das pessoas que perdeu a casa num dos incêndios: o conhecido músico Neil Young. «A Califórnia é vulnerável – não porque há uma má gestão florestal como DT [o nosso por assim dizer presidente] gostaria que pensássemos. Estamos todos vulneráveis porque as alterações climáticas existem: os acontecimentos climatéricos extremos e a nossa seca prolongada são parte delas», respondeu o músico no seu site oficial. «Uma resposta absolutamente cruel», acrescentou a cantora Katy Perry. E Rod Stewart criticou Trump dizendo que a «Califórnia precisa de palavras de apoio e encorajamento, não de ameaças ou dedos apontados ou acusações». Não é a primeira vez que personalidades ligadas ao cinema ou à música enfrentam publicamente o Presidente dos Estados Unidos, mas desta vez foram as próprias vítimas a fazê-lo. 

Há quase uma semana que a Califórnia arde sem parar. Dois incêndios de grandes proporções, um em Camp Fire, no norte, e outro em Woolsey, no sul. O primeiro, já considerado o incêndio mais mortífero na história da Califórnia e que começou na quinta-feira da semana passada, já causou a morte a pelo menos 48 pessoas, enquanto o segundo fez duas vítimas mortais. Ambos contam com a oposição de mais de oito mil bombeiros e dezenas de meios aéreos, que não têm sido suficientes para debelar as chamas. 

Se o incêndio de Camp Fire ameaça as populações de classe média e baixa, já o de Woolsey avança contra as casas de celebridades da indústria da música e do cinema. Kim Kardashian e Kanye West foram obrigados a abandonar a sua casa de 60 milhões de euros, mas contrataram bombeiros privados para a salvarem – privilégio que as pessoas do incêndio de Camp Fire não tiveram. Já Gerard Butler, Robin Thicke, Miley Cyrus e Neil Young viram as suas casas ficarem reduzidas a cinzas e juntarem-se nas estatísticas às mais de 400 casas destruídas. O incêndio de Woolsey já consumiu pelo menos 96 mil hectares e o mais provável é que o número aumente nos próximos dias. Na quarta-feira, os bombeiros já tinham conseguido conter 47% do incêndio. 

A situação parece bem pior no norte da Califórnia, onde a cidade de Paradise foi erradicada pelas chamas, com mais de sete mil estruturas destruídas, a maior parte casas. «Noventa e cinco por cento da cidade desapareceu», anunciou o deputado municipal Michael Zuccolillo ao San Francisco Chronicle. «Os cinco por cento de edifícios que restam mal se aguentam de pé». Mais de 113 mil hectares foram consumidos pelas chamas e pelo menos 300 mil pessoas foram deslocadas. Há uma centena de desaparecidos. O número de vítimas poderá continuar a aumentar nos próximos dias, mas as autoridades já anunciaram  que estão com dificuldades em identificar os restos mortais entre os destroços. «Uma das coisas que vi quando lá estive é que em algumas áreas há muitos destroços e será muito difícil determinar se existem ou não restos mortais», disse Kory Honea, xerife do condado de Buttem, um dos afetados pelo incêndio. «Em alguns dos casos as chamas eram tão intensas que queimavam tudo até ao chão e até derretiam metal», acrescentou. E referiu que «é possível as temperaturas terem sido tão altas que consumiram os corpos por completo». Para tentarem ultrapassar as dificuldades, as autoridades já pediram reforços à Guarda Nacional e a equipas de antropólogos para se juntarem às buscas. 

‘Se vais morrer, morre a lutar’

O avanço abrupto das chamas em Camp Fire, que chegaram a percorrer o equivalente a um campo de futebol americano em apenas um segundo, apanhou tudo e todos desprevenidos. Sem saberem o que fazer, os habitantes de Paradise pensaram que iriam morrer. «Telefonei-lhe e disse: ‘Nick [o seu marido], vou morrer e não vou conseguir sair daqui. Há chamas por todo o lado e não sei o que fazer», contou Nichole Jolly, enfermeira no Hospital de Paradise, à CNN. «Ele respondeu: ‘Não morras, corre. Se vais morrer, morre a lutar. Tens de correr’». Jolly correu para o seu carro e, sem olhar para trás, acelerou até embater num camião de bombeiros. Os bombeiros colocaram-na dentro da viatura, mas, pelo rádio, avisaram a central que não iriam conseguir sair dali sem apoio aéreo. Não receberam resposta e, sem mais nem menos, surgiu um bulldozer que lhes abriu caminho. Aceleraram sem olhar para trás e chegaram ao hospital, onde Jolly se juntou às suas colegas e começou a tratar dos feridos. Não teve tempo para se recompor, contou. 

Não foi a única experiência a comover os norte-americanos. Whitney Vaughan e o seu marido estavam na sua casa em Paradise quando viram as chamas surgirem no horizonte. «Estavam a silvar e a avançar tão rápido», contou Whitney. Apenas tiveram tempo de pegar nuns quantos pertences e sair de casa. Na rua, viram um homem, com um bebé nos braços, a correr «tão rápido como podia». Entraram no carro, mas rapidamente se viram bloqueados no trânsito. Em pânico, outros condutores tentaram abrir caminho embatendo noutros carros e bloqueando ainda mais a passagem. Encurralados, os condutores e as suas famílias abandonaram os carros e correram em direção a um local seguro. «Não havia quaisquer bombeiros», disse Whitney. «Mal conseguimos ficar à frente das chamas», acrescentou, referindo que «pensávamos que as chamas nos iam matar». Os carros arderam todos.

As autoridades tentam fazer tudo o que podem para combater as várias frentes dos vários incêndios, mas não estão a ter sucesso. «Os nossos bombeiros estão a enfrentar condições de fogo duras e extremas que dizem jamais ter enfrentado», explicou o chefe dos bombeiros de Los Angeles, Daryl Osby, no domingo passado. O Departamento de Bombeiros da Califórnia viu-se obrigado a pedir a bombeiros de outros estados que o viesse ajudar. Texas, Arizona, Montana, Alaska, Indiana e Georgia foram alguns dos 17 estados que responderam ao apelo. «O Departamento de Bombeiros da Califórnia quer reconhecer os muitos parceiros fora do Estado que se uniram na luta contra estes incêndios florestais», escreveu no Twitter numa legenda com uma imagem a identificar num mapa do país os estados que enviaram reforços. 

As alterações climáticas

A cada grande catástrofe natural, é inevitável referirem-se as alterações climáticas. Se não como causa, pelo menos como catalisador. E assim é com os incêndios da Califórnia, um dos Estados mais afetados pelas alterações climáticas América do norte. A maioria do território do Estado mantém-se atipicamente seco, ainda que a seca tenha reduzido com uma série de tempestades de inverno nas últimas semanas. Não obstante, mais de metade da Califórnia encontra-se numa situação de seca moderada ou pior, com 18% do seu território com condições de seca extrema. Por exemplo, há 211 dias que Paradise não via chuva, fazendo com que a sua localização, no sopé das montanhas de Sierra Nevada, fosse bastante propícia a que árvores secas e mortas se acumulassem, servindo de combustível para o incêndio. Segundo o Serviço Florestal norte-americano e a Universidade de Montana, a diminuição da precipitação e secas mais longas são as principais causas para os incêndios no Estado. 

E se não bastasse que o território estivesse em grande parte seco, os ventos fortes foram outro aliado de peso do incêndio. Ventos de mais de 64 km/hora, que, por vezes, ultrapassaram os 70 km/hora, marcaram a terça-feira no sul da Califórnia. Chegaram a ser tão fortes que, numa frente do incêndio em Woolsey, nas proximidades de Malibu, no sul do estado, se formou um tornado de fogo – fenómeno registado pela primeira vez a 23 de julho deste ano, num outro incêndio na Califórnia. 

«Estamos num novo normal. Coisas como estas farão parte do nosso futuro», disse o governador californiano, Jerry Brown, referindo-se aos incêndios de grandes proporções. O governante anunciou no primeiro dia dos incêndios que enviou uma carta ao Presidente a pedir que declare a zona como desastre de grandes proporções como forma de se reforçar a resposta de emergência e desbloquear verbas para a reconstrução das casas ardidas. Trump respondeu, mas com a ameaça de se encontrar de imediato uma solução para o que diz serem as debilidades da gestão da floresta. 

Os dez maiores incêndios no Estado aconteceram todos desde 2015, relembra a CNN, e a lista ainda não inclui o de Camp Fire. «Muito [do que está a acontecer] está relacionado com o clima; temos visto um aumento significativo das temperaturas; temos visto um aumento das condições de seca», explicou Lia Parker, porta-voz do Departamento de Bombeiros da Califórnia. 

Uma situação que tem levado especialistas a alertar para a necessidade de se mudar de estratégia relativamente aos incêndios. Em vez de as autoridades se focarem no combate, deve optar-se cada vez mais por uma estratégia de prevenção. «Todos os anos definimos um novo recorde, investimos mais em supressão e investimos menos na mitigação e perguntamo-nos sobre o porquê de não o conseguirmos combater», disse Jerry Williams, antigo diretor do departamento de fogo e aviação do Serviço Florestal norte-americano, em entrevista à Reuters.