Campus de Justiça. PSP tem armas sem balas e mulheres a menos

O SOL publica na integra a investigação publicada na edição do i desta quinta-feira.

Quinta-feira, 23:45. A Alameda dos Oceanos, em Lisboa, está deserta. Mas da rua é possível ver a agitação da procuradora do Cândida Vilar no seu gabinete de paredes de vidro. Por diversas vezes a magistrada do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, que tem em mãos um dos casos mais mediáticos do país, levanta-se e anda de um lado para o outro com papéis. Está a ultimar – à vista de quem quiser ver – a acusação da Invasão a Alcochete, um caso em que estão em causa crimes de terrorismo. No Campus da Justiça não se vê um único agente da PSP. O único destacado (entre as 19h e a 1h, rendido depois por outro entre a 1h e as 7h) deve estar na esquadra, que fica no piso -1, como é habitual. 

“Se num dia como este quiserem fazer alguma coisa ou ao magistrado ou a quem quer que seja acha que é uma pessoa que impede?”, começa por explicar ao i uma fonte conhecedora da segurança do principal complexo de tribunais do país.

O i sabe que juízes e magistrados já se aperceberam das dificuldades com a segurança no Campus e que o assunto já foi comunicado às respetivas hierarquias.

Cada vez menos polícias Até há quatro anos, o número de efetivos da PSP na esquadra do Campus da Justiça era 64, tendo havido um decréscimo abruto – hoje há apenas 40. São estes elementos que fazem rondas no exterior do Campus da Justiça e transportam todos os detidos que vêm do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP e presos que vêm dos estabelecimentos prisionais até às salas de audiência. Os primeiros são transportados pela PSP até aos calabouços do Campus da Justiça, de onde saem escoltados pelos agentes do Campus da Justiça até à sala de audiências. Os segundos são levados até à ala de presos pela guarda prisional, também saindo de lá acompanhados pelos elementos da esquadra do Campus. 

E é neste transporte de presos e detidos desde os calabouços até às salas que a diminuição do número de efetivos e por conseguinte de segurança mais se tem sentido. Segundo a investigação do i, é cada vez mais comum haver situações em que três elementos da polícia escoltem seis detidos ou presos, que vão algemados aos pares, ou seja, cada um com uma mão livre.

Ao i, fontes da PSP que preferiram não ser identificadas garantem que a segurança do Campus da Justiça está em risco, lembrando que, muitas vezes, além dos algemados encontram dentro das salas de julgamento ambientes muito hostis por parte dos familiares dos detidos.

“O que há hoje não dá garantias aos magistrados”, adiantam. Ainda que juízes e procuradores não estejam a par de todos os problemas com a segurança do Campus da Justiça, a verdade é que no último ano foram já tomadas medidas para evitar que magistrados e detidos ou presos se cruzem nos elevadores: “Dividiram até os elevadores, um ficou para os juízes e procuradores, outro para os polícias que sobem com os presos”, revela ao i uma fonte do Campus da Justiça. Esta informação foi confirmada por fonte da Justiça, que adiantou que era uma reivindicação dos juízes desde há algum tempo.

Agentes têm armas sem munições para evitar tragédia Com poucos efetivos, as regras de sempre para o uso de armas também foram alteradas: desde há uns meses os polícias têm de andar com armas descarregadas dentro dos edifícios do Campus da Justiça. Fontes da PSP explicam que o objetivo desta medida é evitar uma tragédia, dado que muitas vezes os polícias estão em desvantagem. Por outro lado, o i sabe que internamente os elementos da esquadra do Campus da Justiça já manifestaram o seu descontentamento, sustentando que uma arma descarregada de pouco lhes serve numa situação de emergência. A norma interna do comandante é clara, tanto nas celas como na condução às salas de audiência a arma no coldre deve estar sem munições na câmara. Se nas celas esta regra é considerada normal, na condução dos detidos e presos às salas de audiência não. E o que devem fazer se precisarem de a usar? Carregá-la no momento com um carregador municiado que levem no bolso.

A determinação do comandante Carlos Manuel Jorge, dada por escrito, levou a que muitos agentes não saibam como agir – se respeitando a determinação e pondo em causa a segurança ou desrespeitando a norma e acautelando o que acham ser mais seguro. O i sabe que atualmente há agentes que seguem à risca a norma, outros que nem sequer andam com carregador municiado no bolso, os que para evitar perguntas e risos dos detidos coloquem um carregador vazio e ainda os que decidiram correr o risco de contrariar a determinação e andam com a arma carregada (ver fotos em cima).

“Se for preciso agir, cada fração de segundo é importante”, explicam fontes da PSP que entendem esta decisão. “Às vezes está um polícia sozinho com dois arguidos e a família, se quiserem sair”, lembra outra fonte conhecedora do funcionamento do Campus da Justiça, recordando que a fuga de detidos que aconteceu à pouco tempo no Porto não é assim tão difícil de perceber.  

Presas não são revistadas Ao contrário daquilo que está determinado é comum que uma detida ou uma presa suba para a sala de audiências sem uma revista minuciosa, uma vez que só existem duas agentes mulheres, um número insuficiente para cobrir os quatro turnos. 

Assim sendo e porque só pode ser feita revista por um agente do mesmo sexo, são, segundo o i apurou, várias as situações em que esta revista não é feita. E como consequência já chegaram a entrar objetos proibidos.

Confrontada com todas estas situações, a PSP admitiu ao i a diminuição do efetivo no Campus da Justiça, bem como a determinação de andarem com armas descarregadas dentro dos edifícios e a falta de elementos femininos. Ainda assim, e apesar de frisar que não há “risco zero”, fonte oficial diz que tudo está controlado.

Um controlo que naquela noite de quinta-feira e em muitas partes do dia a dia do Campus da Justiça parece estar longe de ser alcançado.

PSP admite falhas Ao i, o Ministério da Administração Interna encaminhou qualquer esclarecimento para a PSP, que começou por esclarecer a diminuição do número de efetivos: “A redução nos últimos 4 anos deve-se a questões relacionadas com a gestão de recursos humanos que a PSP tem vindo a realizar, considerando o decréscimo de elementos que, gradualmente, temos vindo a assinalar a nível geral. Este problema está já comunicado superiormente e a PSP tem procurado encontrar soluções de melhor gestão possível para os vários departamentos policiais e esquadras que existem em todo o Comando Metropolitano de Lisboa (COMETLIS)”.

E quanto ao facto de muitas vezes os detidos serem algemados aos pares, dizem que não põe em causa as boas práticas – “que  o facto dos detidos serem conduzidos algemados traduz-se no cumprimento de um procedimento definido na PSP”.

Na resposta extensa envida ao i, a Direção Nacional da PSP não explica o porquê de dentro dos tribunais os agentes não poderem andar com as armas carregadas – esclarecendo apenas que não podem usar armas carregadas junto às celas. “Aquando do transporte de detidos na via pública, os policias portam as suas armas carregadas. Em espaços destinados à detenção, devidamente securizados, os polícias, à semelhança do que sucede com os efetivos da Guarda Prisional, portam as suas armas descarregadas, por razões de segurança dos próprios elementos policiais”, afirma a PSP.

Mas a questão é que nos corredores dos tribunais do Campus da Justiça também não podem, algo que foge à regra, até porque até os magistrados o podem fazer.

Sobre a inexistência de mulheres agentes em número suficiente a PSP confirma. “Existem algumas polícias nos quadros da ESCJ, embora reconheçamos não em número suficiente para as necessidades. Este é um problema identificado e que se tem procurado colmatar, principalmente com pedidos de reforço para determinados processos/situações”, referem, garantindo que isso não conduz nem pode conduzir a qualquer abuso ou infração: “Detidas femininas são sempre revistadas por polícia do mesmo sexo”. 

Magistrados atentos às falhas Podem não saber de tudo o que se passa e desconhecer muitas das insuficiências, mas juízes e procuradores têm noção de que o efetivo da PSP está longe daquilo que era há uns anos. 

E segundo José Góis, procurador-coordenador nas varas criminais, já foi comunicado oficialmente: “Já manifestei essa situação [a insegurança] até formalmente, alertando a hierarquia para o facto de sobretudo nos processos de não presos muitas vezes  não termos segurança disponível rapidamente. Não temos só processos só processos de presos, e há problemas que se colocam em processos em que não há presos, porque há interesses conflitantes entre as pessoas, há famílias rivais dentro da mesma sala de audiências e quando não há nenhum agente da PSP, na sala nunca temos, já basta eles terem de circular pelas salas onde arguidos detidos e portanto não temos às vezes nem na sala, nem no piso nenhum agente disponível, o que significa que temos de ligar para a esquadra e eles vão ter de mandar alguém. Isso é algo que eu já reportei. Quanto aos arguidos detidos, os elementos da PSP tomam logo conta da ocorrência. não tenho informação de algo que tenha ocorrido até hoje”.

“Temos muito processos em que não há arguidos detidos, mas que no dia do acórdão ouvem que vão ficar em prisão preventiva”, acrescenta, dizendo que nesses casos é complicado: “Não temos forma de ter em dois minutos”. O coordenador do MP nas varas criminais lembra que na Boa Hora havia sempre polícia junto às salas de audiência e quando havia excessos aparecia sempre um agente, algo que nos edifícios atuais não é possível devido à disposição e à dimensão. “Naquele hiato de tempo pode acontecer alguma coisa”, conclui.

Quanto à segurança das instalações durante a noite, José Góis, que costuma trabalhar até de madrugada, recorda que acabaram as rondas da meia noite dentro no edifício feitas por seguranças e que hoje o único segurança que vê é o que está na porta que dá para a garagem, a única que fica aberta à noite. “Não vejo normalmente mais ninguém, às vezes cruzo-me com um ou dois agentes da PSP”, a princípio não há problemas porque as portas estão todas fechadas, “só a da garagem permanece aberta, por isso nunca me senti inseguro”.

José Góis adianta ainda que nem sequer tem conhecimento de que haja detidas que não sejam revistadas por falta de agentes mulheres: “A ser assim, pode levantar problemas de segurança”.

Do lado dos juízes, a falta de profissionais da PSP também é conhecida. “A nossa perceção é que cada vez mais há dificuldades dos senhores para tudo o que seja o transporte de arguidos privados de liberdade por exemplo. Estes arguidos têm de ser transportados desde os calabouços até às diligências em que devem estar presentes. Uma das preocupações que existem desde sempre é que existem meios exíguos para transportar os arguidos aqui e por vezes temos de estar muito tempo à espera porque há poucas carrinhas de serviços prisionais, guardas e depois quando chegam ao Campus os agentes deparam-se com muitas dificuldades. Sendo poucos como são, não se podem desdobrar e fazem uma grande ginástica para assegurarem o mínimo de regras de segurança que é vir pelo menos um arguido acompanhado por um agente e não é certamente porque eles querem”, adianta ao i o juiz coordenador nas varas criminais, dizendo que também não o “espanta” que o reduzido número de mulheres polícia leve a que se incumpram algumas regras de segurança.

Ainda assim, o juiz coordenador deixa um elogio aos agentes: “Eles têm dado todo o apoio, saem depois da hora a que tinham de sair, acompanham as diligências até ao fim. A dedicação dos agentes  da PSP está acima de qualquer questão, mas eles não conseguem é fazer mais do que fazem”. 

Garante ainda que os juízes desconhecem a norma que determina que os polícias têm de andar com armas sem munições dentro do tribunal: “Os juízes não tiveram conhecimento de que os agentes da PSP andam sem carregador na arma dentro do tribunal”.

A falta de efetivos da PSP e a demora dos arguidos a chegar às diligências foi, segundo o juiz coordenador, comunicada por diversas vezes ao Conselho Superior da Magistratura e ao gabinete da Ministra da Justiça.

Questionado na última terça-feira pelo i com todas estas falhas, o gabinete de Francisca Van Dunem limitou-se a responder: “Não foi identificado nenhum problema de segurança no Campus da Justiça”.

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