O Porto já não é o que era

As comunidades de rua foram sendo desativadas, dispersando-se pelos bairros municipais atomizados. Assistimos à perda dos vínculos de boa vizinhança, da relação entre as pessoas da mesma rua, da mesma ilha, do mesmo bairro

Pela manhã, o senhor Olímpio, o peixeiro de Campanhã, carrega a pequena carrinha com caixas de peixe e lá vai de rua em rua, de porta em porta, fornecendo o peixe à sua clientela. As pessoas que o compram são geralmente mulheres e homens de idade avançada, a quem as pernas da velhice e a doença já não permitem ir ao mercado. Todas as manhãs o mesmo rosário, a mesma conversa, os mesmos clientes e os mesmos gatos. 

Ao redor da sua carrinha, uma espécie de banca de peixe ambulante, as mulheres perguntam se a sardinha hoje é ‘bibinha’. Como estamos num dos enclaves da cidade oriental, aqui também se trocam os ‘v’ pelos ‘b’. 

O senhor Olímpio percorre todas as manhãs os cantos da Campanhã Oriental. Já perdeu a conta aos anos de dedicação a uma clientela que o estima e lhe reconhece valor. São os ‘meus fregueses’, os ‘meus amigos’. Uma família.

A Campanhã de hoje já não tem o brilho e a vida das últimas décadas. As ruas estão cada vez mais velhas e abandonadas, as casas de muitos clientes a quem vendia o peixe estão encerradas e algumas em ruínas. Antigos bairros foram demolidos e os moradores deslocados para os enclaves do Cerco e do Lagarteiro. As antigas ilhas da rua de Bonjoia estão vazias de gentes e a cair de velhas.

No bairro dos ferroviários as casas estão entaipadas. Um lugar onde outrora corria sangue jovem e muita gente é agora um cemitério de memórias, de registos abandonados, de sombras e de solidão. Ainda se podem ver despojos de uma ou outra família, que ao sair deixou para trás alguns tarecos. Eletrodomésticos, pequenos quadros de família, louças, móveis, e um sem número de objetos que já perderam o seu fio de vida. 

Ao lado do bairro dos ferroviários encontramos o glorioso campo de Futebol do Mário Navega, onde se realizavam os tira-teimas dos jogos entre solteiros e casados. Os tanques onde já se lavou muita roupa e tanta má-língua são agora um lugar de silêncio, sem água e sem lavadeiras. Estendais sem roupa a secar anunciam-nos o vazio e o abandono, a perda de comunidade em nome da salubridade e da segurança pública.

 

As políticas da deslocalização e da segregação tiveram como suporte ideológico um pensamento sanitário, higienista e assistencialista, que permitiu aos poderes municipais (apoiados em políticas de habitação nacional) esvaziar as ruas, tirar os bairros de dentro da cidade, dispersar as suas comunidades, destruir as estruturas da economia social da cidade em benefício de um modelo de cidade insustentável. 

A cidade do centro, densa, compacta e diversificada foi-se despovoando, permitiu a gentrificação e a turistificação. Estamos perante a criação da ‘marca Porto’, da cidade-mercadoria, sedutora na imagem e de fácil utilização. É a comercialização da cidade histórica e património mundial da UNESCO. 

As comunidades de rua foram sendo desativadas, dispersando-se pelos bairros municipais atomizados. Assistimos à perda dos vínculos de boa vizinhança, da relação entre as pessoas da mesma rua, da mesma ilha, do mesmo bairro. As pessoas nas ilhas tratavam-se pelo nome ou pela alcunha, às vezes herdada de pais para filhos. Vinha no ADN familiar e era cartão de identidade antropológico.

Perante a falta de membros, as antigas coletividades lá vão resistindo como podem para dar continuidade às atividades. O senhor Olímpio lembra a diversidade das atividades desportivas, culturais, recreativas que havia na sua Campanhã. Hoje, as coletividades ainda são muitas, mas começam a perder o fulgor e a vivacidade. Agora, as pessoas têm de se deslocar dos enclaves para as suas antigas associações. Mas já são poucas as que o fazem. 

 

A vida dos enclaves é mais massificada, mais redutora, mais anónima. São espaços mais violentos e tensos. As pessoas não se respeitam tanto como na rua, na ilha ou no pequeno bairro. Os miúdos são mais agressivos e violentos. No largo central dos enclaves processam-se os mecanismos de afirmação e intimidação. Enclaves como o Lagarteiro já se apelidam de ‘Favela Chique’.

Na realidade, são espaços de intimidação e de desestruturação da pessoa e da vida familiar. Não têm nenhuma relação com os antigos bairros de rua, que eram monumentos de vida urbana, com uma cultura popular rica na diversidade e na criatividade. Que davam vida, sabor, identidade e razão de ser às festividades populares, fossem elas de natureza pagã ou religiosa. E permitiam a integração das classes populares na vida urbana e burguesa da cidade.