As novas, as repetentes e as inexistentes estrelas do guia Michelin

A  gala de apresentação do guia Michelin para Portugal e Espanha realizou-se pela primeira vez em Lisboa. Contas feitas, houve mais distinções entregues pelos inspetores da ‘bíblia vermelha’, mas o cume do Olimpo do guia – as almejadas três estrelas – permanece ainda intocado pelos portugueses. Os descobrimentos prosseguem – para o ano há mais.

Logo à partida uma vitória estava garantida: a trazer a Lisboa, pela primeira vez, a cerimónia de revelação das escolhas do guia Michelin ibérico. As novidades da constelação para o próximo ano foram apresentadas na quarta-feira, no Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa, numa cerimónia para a qual estavam convidadas 500 pessoas e cujo repasto – lá iremos – ficou a cargo de sete espaços/chefes que já tinham recebido uma distinção.

Contas feitas, o saldo foi positivo: à semelhança do ano passado, não houve perdas de estrelas atribuídas nos anos anteriores e até se superaram as indicações do ano passado. Em 2017, os inspetores tinham atribuído uma estrela a dois novos espaços – o Vista, em Portimão, do chefe João Oliveira; e o Gusto, em Almancil, de Heinz Beck e Daniele Pirillo –, este ano consideraram que três novos espaços eram merecedores de uma estrela (ou seja, nos quais «compensa parar»). E neste caso não nos podemos queixar de que houve tendências bicéfalas no país, já que juntaram ao firmamento do guia um restaurante de Guimarães, outro de Bragança e um de Sintra: o restaurante A Cozinha, de António Loureiro, o G Pousada de Óscar Geadas e, finalmente, o Midori de Pedro Almeida. Este último é o primeiro restaurante português de influência oriental a conseguir escalar até às páginas do famoso guia vermelho e, quem sabe, abrir assim as portas de possíveis predecessores. No total, há 20 restaurantes portugueses aos quais foi atribuída uma estrela (ver lista na página seguinte), um número que, se ainda não impressiona, também não envergonha até porque a tendência dos últimos anos tem sido sempre a mesma: a de um paulatino crescimento.
Passamos, então, para as duas estrelas, onde a história também foi mais feliz do que triste, principalmente para Henrique Sá Pessoa que, com o seu Alma – que conquistou em 2016 a primeira estrela – conseguiu este ano subir até este patamar. «Ainda não caímos em nós! Estamos muito felizes por este gigante reconhecimento para o nosso Alma, foi um ano de muito trabalho para esta fantástica equipa e agradecemos ao Guia Michelin a confiança no nosso trabalho! Vamos continuar o nosso caminho e a fazer aquilo de que mais gostamos!», afirmava o chefe num comunicado enviado após a cerimónia às redações.

O restaurante, que fica em Lisboa, foi o primeiro projeto do chefe em nome próprio. Depois de uma primeira morada, em Santos, instalou-se em 2015 no Chiado, num edifício do século XVIII, onde chamou imediatamente a atenção do guia. E não será de somenos dizer que é este o grande laboratório do chefe de 42 anos, bem conhecido dos portugueses devido aos programas televisivos e livros de cozinha que foi colecionando ao longo da sua carreira. Por lá, o «o sabor é o protagonista; os produtos e os produtores nacionais e uma cada vez mais profunda inspiração na cozinha tradicional, complementam o seu ADN». E o caminho para a simplicidade é a chave, descreve a equipa do chefe no mesmo comunicado. «No prato, há cada vez menos elementos, mas mais técnica, mais elegância, mais criatividade. Por outro lado, sazonalidade e sustentabilidade entraram no léxico comum de Henrique Sá Pessoa – o Menu Costa a Costa, exclusivamente à base de peixe e marisco da nossa costa, é o reflexo de uma abordagem inovadora, com propostas inesperadas e a utilização de espécies pouco conhecidas e comuns. A seguir vêm as suas influências e referências: as viagens pelo mundo, a paixão pela Ásia, a vida em Lisboa». 

O Alma juntou-se, assim, a cinco espaços portugueses que já tinham alcançado em anos anteriores as duas estrelas: o Belcanto (de José Avillez, em Lisboa), o Ocean (de Hans Neuner, em Porches), o Il Gallo d’Oro, no Funchal, sob os comandos de Benoît Sinthon; o The Yeatman, em Vila Nova de Gaia, de Ricardo Costa; e o Vila Joya, em Albufeira, liderado por Dieter Koschina. Estes são os representantes de uma categoria que, de acordo com os parâmetros da bíblia vermelha, apresentam uma «cozinha excelente», pelo que «vale a pena o desvio».

O ‘Olimpo’ do guia – as almejadas três estrelas – permaneceu, contudo, vedado a projetos portugueses. Nos dias que antecederam a revelação, as apostas indicavam que, pelo menos dois restaurantes – o Belcanto e o Ocean –, eram fortes candidatos a inaugurarem o lugar mais brilhante do firmamento em Portugal. Tanto José Avillez como Hans Neuner pertenciam à equipa de sete chefes que, na passada quarta-feira, ficou responsável pelo jantar da gala, e Avillez foi, inclusivamente, o coordenador-geral do evento. A eles juntaram-se outros cinco chefes estrelados: Alexandre Silva (Loco), Sergi Arola (LAB), Gil Fernandes (em representação de Miguel Rocha Vieira, que abandonou recentemente o Fortaleza do Guincho), João Rodrigues (Feitoria), Joachim Koerper (Eleven) e Henrique Sá Pessoa. Cada um apresentou três pratos principais e uma sobremesa – entre as propostas, a título de exemplo, contavam-se iguarias como asas de frango com lavagante do Guincho (Arola), tarte de tomate preservado e papada de porco (João Rodrigues) ou bôla de cogumelos silvestres com patê e escabeche de perdiz (José Avillez), sempre acompanhados de vinhos portugueses o que, num cenário dominado nos últimos anos por Espanha, representou só por si um momento de vitória ou, pelo menos, uma mudança de paradigma.

Como tal, os prognósticos no fim do jogo só podem ser positivos – podemos não ter ainda nenhum restaurante de três estrelas neste que é o mais prestigiado guia gastronómico do mundo, mas pelo menos o interesse pelo que de melhor por cá se faz – e se come – é indiscutivelmente maior. 

Um guia centenário

Ano após ano, com mais ou menos polémicas, o Guia Michelin continua a cultivar a reputação de melhor guia gastronómico do mundo. Uma máquina que, entretanto, já leva mais de cem anos de funcionamento. Em 1900, durante a exposição Universal em Paris, os irmãos Albert e Édouard Michelin resolveram lançar o ‘Guide Rouge’ – que era o que o nome indica, um guia com uma capa vermelha – com indicações sobre os melhores locais para quem andava na estrada e, à época, precisava de encontrar não só restaurantes como também hotéis.

Com o passar dos anos, as críticas de alojamento e de gastronomia separaram-se. O sistema das estrelas, que se mantém até hoje, foi adotado em 1931. E há outras tradições que se mantém: tiragem do guia, por exemplo, não é divulgada e não se conhece ao certo o número de inspetores – os números apontados oscilam entre os 75 e 80 espalhados pelo mundo. No caso da Península Ibérica, diz-se que são todos espanhóis.

Em 2015, uma inspetora falou à revista Variety Fair sob anonimato – e com a permissão de Michael Ellis, diretor internacional dos guias Michelin – e fez algumas revelações. Por exemplo, explicou que os novos inspetores – que «vêm de famílias dedicadas à comida» – são treinados na casa-mãe, em França. «Dependendo das línguas que falam, depois podem ser enviados para outro país europeu e treinar lá com um inspetor», explicou na altura.

Os critérios aos quais obedecem também permancem, contudo, em sigilo, embora seja claro que diferem consoante o continente. Na Ásia, por exemplo, os inspetores já atribuíram estrelas a pelo menos três restaurantes de comida de rua: em 2010, um restaurante de dim sums em Hong Kong recebeu uma estrela, em 2016 foi a vez de uma banca do mercado Smith Street’s Chinatyown, em Singapura especializada num prato de galinha e arroz. No ano passado, Jai Fay, uma tailandesa de 73 anos que opera vários wooks num restaurante de rua em Banguecoque, o Raan Jay Fai, recebeu também uma estrela.

Dois pesos e duas medidas? Talvez seja apenas um reflexo cultural – ou, pelo menos, aquele pelo qual os inspetores, justa ou estupidamente, se regem.  

Estrelas Michelin em Portugal 

Uma estrela
A Cozinha, Guimarães 
{António Loureiro}
Antiqvvm, Porto
{ Vítor Matos } 
 Bon Bon, Carvoeiro
{ Louis Anjos } 
Casa de Chá da Boa Nova , Leça da Palmeira
{ Rui Paula } 
 Eleven, Lisboa
{ Joachim Koerper } 
Feitoria, Lisboa
{ João Rodrigues} 
Fortaleza do Guincho, Cascais
{ Miguel Rocha Vieira } 
G Pousada, Bragança
{ Óscar Geadas } 
Gusto by Heinz Beck, Almancil
{ Heinz Beck e Daniele Pirillo} 
Henrique Leis, Almancil
{ Henrique Leis} 
LAB by Sergi Arola, Sintra
{ Sergi Arola } 
L’ And Vineyards, Montemor-o-Novo
{ Miguel Laffan } 
Largo do Paço, Amarante
{Tiago Bonito} 
Loco, Lisboa
{ Alexandre Silva} 
Midori, Sintra
{ Pedro Almeida} 
Pedro Lemos, Porto 
{ Pedro Lemos } 
São Gabriel, Almancil
{ Leonel Pereira } 
Vista, Portimão
{ João Oliveira } 
William, Funchal 
{ Luís Pestana e Joachim Koerper } 
Willie’s, Vilamoura
{ Willie Wurger } 

Duas estrelas
Alma, Lisboa
{ Henrique Sá Pessoa} 
Belcanto, Lisboa
{ José Avillez} 
Il G Gallo d’Oro, Funchal 
{ Benoît Sinthon} 
Ocean, Porches
{ Hans Neuner} 
The Yeatman, Vila Nova de Gaia
{ Ricardo Costa } 
Vila Joya, Praia da Galé
{ Dieter Koschina }