Pega de caras

As pessoas dividem-se em duas categorias: as que resolvem problemas e as que arranjam problemas. A ministra da Cultura, Graça Fonseca, parece pertencer ao tipo de pessoas que arranjam problemas. Explicando as razões pelas quais não baixava o IVA das touradas, a ministra disse que a «tauromaquia não é uma questão de gosto, é uma…

As pessoas dividem-se em duas categorias: as que resolvem problemas e as que arranjam problemas.

A ministra da Cultura, Graça Fonseca, parece pertencer ao tipo de pessoas que arranjam problemas.

Explicando as razões pelas quais não baixava o IVA das touradas, a ministra disse que a «tauromaquia não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização».

Dito de outra forma, as pessoas que gostam de touradas são ‘incivilizadas’.

A civilização acabará necessariamente com elas.

Talvez tenha razão: talvez a civilização venha a acabar com as touradas e com os aficionados.

Mas isso será bom ou será mau?

Sabemos que o rolo compressor da globalização tende a uniformizar tudo, a tornar tudo plano, a acabar com o que é diferente.

Mas, até por isso, cabe aos países e aos governos preservar aquilo que é seu, defender a sua identidade e os elementos que a suportam.

Nessa medida, até poderíamos dizer que o papel do Ministério da Cultura deveria ser apoiar os espetáculos diferentes, que são específicos da nossa terra, que nos diferenciam dos outros – e que, por isso, estão ameaçados pela dita ‘civilização’.

Ora, as palavras da ministra mostram que ela não tem essa visão, não entende a cultura desse modo, tende a defender uma cultura estandardizada, uniformizada, de acordo com o ar do tempo.

Este ‘choque cultural’ levou a que as palavras de Graça Fonseca provocassem um pequeno terramoto.

Primeiro no mundo taurino – depois fora dele.

Muita gente que não frequenta touradas achou que a ministra não tem o direito de fazer, com base no seu gosto (ou na sua perspetiva) pessoal, distinções entre os espetáculos – pois desse modo arriscamo-nos a entrar no domínio da pura subjetividade.

No reino da arbitrariedade. 

Em que o Estado definirá a seu bel-prazer o que é ‘civilizacionalmente’ aceitável e o que não é.

Esta polémica alastrou para dentro do próprio PS, cujo presidente – o açoriano Carlos César – é deputado por uma região que tem nos espetáculos com touros uma das suas grandes atrações turísticas.

E aí deu-se o ‘enfrentamento’.

O grupo parlamentar do PS anunciou que iria propor a descida do IVA das touradas – e o primeiro-ministro, apanhado de surpresa, confessou-se perplexo com a decisão.

E adiantou que, se fosse deputado do PS, votaria contra.

Quando se esperava um recuo tático de Carlos César, este manteve-se firme na sua posição.

Não recuou.

E foi mesmo mais longe.

Interrogado sobre se não poderia ser obrigado a mudar de posição em resultado da disciplina de voto, respondeu – desafiando abertamente o primeiro-ministro – que a disciplina de voto é decidida pelo grupo parlamentar e não pelo Governo.

Dito de outra forma, César explicava: no grupo parlamentar do PS sou eu que mando, não é António Costa. 

Confesso que nunca tinha visto o presidente de uma bancada parlamentar enfrentar de um modo tão frontal o líder do partido.

César não foi dúbio, não disse ‘vamos ver’, como é usual dizer nestas alturas; disse terminantemente que não cedia.

Usando a linguagem taurina que o tema justifica, Carlos César fez uma ‘pega de caras’ a António Costa.

E este conflito veio trazer luz a uma situação bizarra que se vive no atual PS.

Habitualmente, o presidente do partido é uma figura honorífica, e quem manda é o secretário-geral.

O presidente, regra geral, é uma velha glória, que deu muito ao partido mas já passou à reforma.

Mas Carlos César recusou esta situação de ‘reformado’.

Em acumulação com a presidência do partido, quis ser o líder da sua bancada parlamentar – e, com isso, mostrou a ambição de ter um poder próprio, de ter os seus soldados, o seu pequeno exército.

Nesta questão das touradas, viu-se para quê: para, em momentos críticos, poder marcar a sua posição e não ter de ir atrás das ordens de Costa.

De certa maneira, e sem que ninguém o tivesse ainda percebido, o PS vive uma situação de liderança bicéfala: António Costa é o primeiro-ministro e o líder, mas Carlos César, com a presidência do partido e a chefia do grupo parlamentar, dispõe igualmente de uma parcela de poder. 

Daqui em diante, ninguém negligencie a força de César.

E está por saber quais serão as suas secretas ambições.