Embaixadores do desconhecido

A longevidade das relações entre a Europa e o Extremo Oriente é o tema da exposição ‘Três Embaixadas Europeias à China’. Jorge Santos Alves, o comissário, falou-nos sobre as aventuras e desventuras de três portugueses que entre o século XIII e o século XVIII foram incumbidos de liderar missões diplomáticas à corte do imperador chinês.

Embaixadores do desconhecido

O que sabiam os europeus sobre a China no longínquo século XIII? Muito pouco. «Há informações que circulam, mas a China é um imenso mistério para a Europa», diz-nos Jorge Santos Alves, professor, coordenador do Instituto de Estudos Orientais da Universidade Católica e comissário da exposição ‘Três Embaixadas Europeias à China’, patente até 21 de abril de 2019 no Museu do Oriente.

Sabia-se pouco – ainda assim alguma coisa. Composto a partir de 30 peles de carneiro, o mapa Ebstorf, um dos mais célebres mapa-múndi da Idade Média, mostrava na metade superior algumas das principais cidades do Oriente: Antioquia, Éfeso, Luoyang (outrora capital do império chinês) e Samarcanda. No quadrante superior direito aparecia a cabeça de Cristo e o Jardim do Éden; no quadrante superior esquerdo surgiam o rio Indo, comedores de ópio, gimnosofistas (filósofos que, segundo Plutarco, renunciavam a todos os bens materiais ao ponto de andarem nus) e – voilà – dois chineses debruçados sobre panos de seda.

Mais ou menos na mesma época em que o mapa Ebstorf era pintado na Alemanha, a Europa estava «com a corda na garganta», explica Santos Alves. Porquê? «Os mongóis, que na altura dominavam uma boa parte da China, tinham conquistado aquilo que hoje é a cidade de Viena» e temia-se que pudessem entrar pelo Velho Continente adentro. Genghis Khan, o grande conquistador mongol, tinha morrido em 1227, mas os seus descendentes continuavam a somar vitórias militares.

«O Papa e os principais reis da Europa estão aflitos, é uma Europa em pânico que pergunta: ‘Que raio de gente é esta? De onde é que eles vêm?’. E, sobretudo: ‘Que religião é que têm?», continua o historiador.

Nesta situação de aperto, o Papa Inocêncio IV tenta uma manobra: «Abrir um canal negocial, uma via diplomática com alguém que os europeus não conhecem, não percebem, mas temem. A ideia é perceber quem são os mongóis, explicar-lhes o que é a Europa, e finalmente quem é o Papa».

Para liderar essa missão, Inocêncio IV escolhe um português, o franciscano Frei Lourenço de Portugal, nas palavras do comissário «uma espécie de super conselheiro do Papa para questões político-diplomáticas». Porém, por razões que hoje desconhecemos, o português «acaba por não seguir viagem» e é substituído por um italiano. Seja como for, entra para a História «como o primeiro embaixador europeu aos imperadores chineses». E, mais importante ainda, a Europa não se torna um prolongamento da estepe mongol.

Embora possamos hoje pensar que só com as grandes navegações dos séculos XVI e seguintes foi estabelecida a ligação entre a Europa e o Oriente, «no século XIII o mundo já estava completamente descompartimentado», defende Jorge Santos Alves. «As viagens entre a Ásia e a Europa aconteciam de uma maneira mais frequente do que se possa pensar. Circulavam ideias, circulavam mercadorias, circulavam pessoas». O caso de Marco Polo, o viajante veneziano que partiu para a Ásia quando tinha 17 anos e regressou a Veneza em 1295, depois de ter percorrido 24 mil quilómetros, é paradigmático. Mas há outros. A exposição mostra artefactos que faziam a rota da seda, da China até à Ásia Central e daí até à Europa. Alguns «são objetos luxuosíssimos, pagos a peso de ouro», explica o comissário. «Estamos a falar de um mundo aberto, é essa a mensagem desta primeira parte».

Uma iniciativa malograda?

O segundo núcleo da exposição é dedicado a Tomé Pires. «O seu pai tinha sido boticário do Rei D. Manuel e ele está para herdar esse lugar mas vai para a Índia» por volta de 1511. «Por esta altura toda a gente sonha com um cargo ultramarino, necessariamente mais bem pago», justifica Jorge Santos Alves.

Da Índia, Tomé Pires é enviado por Afonso de Albuquerque para Malaca «para pôr ordem na casa: evitar maus usos do erário público, desvios, contrabando… coisas muito portuguesas».

Embora exercesse um cargo administrativo, Tomé Pires não deixou de exercer a profissão de farmacêutico. «Por isso apresentamos esta montra com toda a panóplia das principais especiarias e drogas, como se dizia então». Entre estas, encontra-se uma pedra de bezoar, «um cálculo de matéria orgânica não digerida que algumas espécies de cabras do Irão e do Iraque desenvolvem e que era usado como antídoto. Uma das primeiras coisas que o Rei D. Manuel manda comprar é um bezoar para mandar para Lisboa».

Em Malaca, durante três anos Tomé Pires fala com pessoas, entrevista pessoas, lê coisas, traduz coisas». Assim nasce a Suma Oriental, «uma enorme descrição de tudo: comércio, geoestratégia, política, religião, etnografia, antropologia, tudo, tudo, tudo, desde o cabo da Boa Esperança até ao Japão». O exemplar exposto no Museu do Oriente é um dos dois que se conhecem. «Isto foi enviado ao Afonso de Albuquerque, que o mandou ao Rei de Portugal. Ficou guardado, porque tem informação sensível». Teria de esperar até 1978 para ser publicado pela primeira vez em Portugal.

Em 1515 ou 1516 Tomé Pires é chamado a Goa. Informam-no de que o Rei o escolheu para liderar uma embaixada ao imperador chinês. E parte acompanhado de cerca de 40 pessoas. «Além de algum aparato levam presentes para o imperador, como capacetes, espadas e armaduras». Ou coral encarnado, o presente mais apreciado, «que os portugueses mandaram recolher em várias partes da Ásia e que no palácio imperial era usado para poções da farmacopeia chinesa».

Apesar destes esforços, as coisas não correram de feição. «A embaixada é descrita muitas vezes pelos historiadores como um falhanço, um fracasso, um fiasco, um projeto malogrado», refere Jorge Santos Alves. Embora não se saiba exatamente o que aconteceu, sabe-se que toda a iniciativa poderá ter sido comprometida por um erro de palmatória. «Na carta enviada por D. Manuel, ele chama ao imperador chinês ‘meu irmão’, o que era habitual entre os reis da Europa. Ora, o imperador da China não tem irmãos, muito menos uns bárbaros de que ele nunca ouviu falar. Esse foi um dos erros graves. Mas houve outros».

Embora não tenha produzido os resultados esperados, a embaixada de Tomé Pires em 1517 também não foi em vão. Permitiu recolher informação sobre aquele império e fez parte «do longo processo de ajustamento» e de aproximação entre as culturas europeia e asiática. Acima de tudo, contribuiu para que mais tarde não fossem cometidos os mesmos erros.

De irmão a vassalo

Avançamos agora mais de dois séculos até à embaixada de Francisco Pacheco de Sampaio ao imperador Qianlong em 1752. Jorge Santos Alves descreve o embaixador como «um magistrado de uma comarca alentejana, um nobre sem grande prestígio que acaba por ser escolhido para esta missão porque se deu ao trabalho de ler tudo o que havia no Arquivo Real sobre a China». O historiador recorda que, à época, «é na biblioteca do palácio de Mafra que se guarda a melhor e mais atualizada coleção de livros sobre a China que há na Europa».

Composta por 70 pessoas, a comitiva de Pacheco de Sampaio tinha como objetivo dar um segundo fôlego à presença portuguesa na Ásia, que se encontrava então em manifesto declínio. «Ao contrário do costume, o Pacheco de Sampaio foi recebido três vezes pelo imperador. O imperador gostou tanto dele que lhe pediu três vezes para não abandonar a corte e ficar mais uma semana», conta o comissário da exposição.

Dessa visita resultou aquele que é o ponto alto da exposição: uma carta com perto de quatro metros de comprimento, em papel estampado a ouro sobre seda amarela, a cor reservada aos imperadores.

E o que diz o texto? «É uma carta de cortesia do imperador a dizer que recebeu o embaixador e a saudar o Rei de Portugal. O resto é a lista dos presentes: tecidos, porcelanas, chás, objetos de laca». Curiosamente, só na década de 1970 a carta foi adquirida pelo Estado. Até então encontrava-se numa coleção particular.

Embora hoje nos impressione pela sua beleza e imponência, a missiva não pode ter agradado ao seu destinatário. «Podemos imaginar qual terá sido a reação de D. José I ao ver ali a palavra vassalo, que aparece por duas vezes». Para Quianlong, o seu império estava no centro do mundo – e não era o rei de um país nos confins da Europa que ia convencê-lo do contrário.