Chuva de estrelas

A porção de comida é quase sempre tão reduzida que não parece destinar-se a pessoas que gostam de comer mas sim a pessoas enjoadas da comida.

ATÉ HÁ UNS anos, o Guia Michelin não queria nada com Portugal. Os restaurantes estrelados eram dois ou três, para as bandas de Almansil, no Algarve, parece que geridos por estrangeiros, com chefs estrangeiros e frequentados sobretudo por estrangeiros.

Mas de repente a história inverteu-     -se. Portugal surge hoje como grande açambarcador de estrelas Michelin, com José Avillez, primeiro, e Henrique Sá Pessoa, agora, a surgirem como vedetas. A lista de restaurantes estrelados já vai em 26 nomes, 20 com uma estrela e 6 com duas, e Lisboa acolheu este ano a respetiva gala.

DEVO DIZER que as minhas experiências em restaurantes com estrelas Michelin não foram boas – como já um dia escrevi. Num deles ia morrendo asfixiado com um fígado de pato entalado na garganta. Aquilo vinha dentro de uma suposta canja que parecia água choca – e eu achei que o caldo era tão mau que o ‘segredo’ do petisco só podia estar na víscera. Meti-a na boca, mas a pele era tão dura que não a consegui mastigar. Decidi então engoli-la inteira – e foi aí que estive à beira da asfixia.

Doutra vez pedi um borrego assado no forno e veio uma espécie de pudim flan, feito com carne de borrego desfiada, enfeitado em cima com um bocadinho de borrego em sangue e um pé de hortelã. Um fiasco.

Num terceiro restaurante pedi um caldo verde, que estava normal, e disseram-me que o chouriço vinha à parte. Pensei que era um chouriço especial, e que faziam questão de o isolar para o cliente o apreciar melhor. Qual não é o meu espanto quando vejo a empregada aproximar-se com um vaporizador em riste, tipo borrifador de roupa, apontar ao caldo verde, premir o gatilho e soltar um esguicho de vapor. O chouriço era aquilo…

OUTRO HÁBITO que existe nestes restaurantes é oferecerem como entrada um consomé. O empregado vem junto da mesa e explica, em nome do chef, do que se trata. Está uns longos momentos a dizer que o caldo tem isto, e mais isto, este e aquele ingrediente – e quando o coloca na mesa trata-se de um copinho do tamanho de um dedal. E nós ficamos a pensar se o empregado estava a falar a sério ou se esteve a brincar connosco ao recitar aquela ladainha… 

De resto, nestes restaurantes de nouvelle cuisine, temos várias vezes a sensação de que estão a fazer-nos de parvos. Vem um prato enorme com dois pedacinhos de comida no meio. E nós interrogamo-nos: para que serve este prato tão grande? Para tornar mais evidente que a comida é escassa?

A porção de comida é quase sempre tão reduzida que não parece destinar-se a pessoas que gostam de comer mas sim a pessoas enjoadas da comida. A pessoas que, por viverem na abastança, já não gostam de comer e apenas debicam no prato.

NESTAS OCASIÕES lembro-me sempre de uma célebre cena de A Cidade e as Serras em que, numa festa parisiense, de gente finíssima, as pessoas estão à espera de um peixe assado requintadíssimo que vem da cozinha para a sala por um elevador interno – mas o elevador encrava e fica a meio da viagem. Apesar de múltiplos esforços, ninguém consegue trazer o peixe para cima. E acabam todos por passar fome. No fim do romance, o protagonista – que nesse ambiente parisiense tinha ficado empanturrado de civilização e já enjoava a comida – voltou para Portugal onde reencontrou o gosto pela vida… e por um bom prato de genuína comida portuguesa.

De facto, quem gosta  de comer, depois de ir a um desses restaurantes de nouvelle cuisine, pensa à saída: e agora onde vou jantar?

CERTA OCASIÃO, organizei num jornal um inquérito onde perguntava a pessoas ilustres qual era o seu restaurante preferido. Um conhecido escritor respondeu: «O Valério». Informei-me sobre o mesmo: tratava-se de um pequeno restaurante na rua Saraiva de Carvalho. E o escritor gostava de lá comer porque era em frente de sua casa, era bem tratado e a comida era simples e bem confecionada.

Penso que é disto que a maioria das pessoas gosta: comida simples e bem confecionada. A um restaurante estrelado pode ir-se por curiosidade, por presunção ou por ostentação – mas não pelo prazer da mesa.