Sapatos de verniz, meias rotas…

O Governo serve para ‘dar boas notícias’, sem nenhum pudor na propaganda, e desaparece nos momentos críticos. 

Somos um país voltado para o mar, que já fez a nossa grandeza, mas de costas voltadas para o interior, que agoniza no meio da desertificação, a braços com a degradação de infraestruturas, corroídas pelo tempo. Isto, dito assim, é um lugar-comum, sem a menor novidade, correndo o risco de suscitar um bocejo ou um encolher de ombros.

Vale a pena, porém, reler um estudo divulgado em Maio deste ano, que apurava ser a densidade populacional média do interior de Portugal 0,28 habitantes/Km2, enquanto no litoral chega aos 104. Um fosso abissal. 

Mais perturbador é saber-se que, entre 1960 e 2016, a população residente no litoral aumentou 52%, enquanto no interior diminuiu 37%. E que, das crianças e jovens com menos de 25 anos, 82,4% vivem no litoral e 17,6% no interior.

A macrocefalia agravou-se exponencialmente nas áreas metropolitanas de Lisboa (2,8 milhões) e do Porto (1,8 milhões), concentrando cerca de 45% do total da população residente no continente. A litoralização do país soma e segue – e o resto é paisagem. 

 

Por isso, os media somente instalam o ‘circo’ no interior quando a desgraça bate à porta, desde os grandes incêndios, como aconteceu em Pedrógão Grande ou na região Centro, em 2017 (e já este ano em Monchique), ou quando abateu a estrada em Borba, que há muito deveria ter sido encerrada à circulação. 

Era uma garganta estreita, suspensa entre precipícios escavados pela extração de pedra, cuja insegurança estava há muito reconhecida tanto pelo município como por organismos do Estado. Em vão.

As pedreiras a céu aberto de Borba, tal como a floresta dizimada (sem esquecer o Pinhal de Leiria, uma mata pública…), provam a vulnerabilidade do país, onde vicejam realidades antagónicas que oscilam ente a euforia imobiliária, com um custo especulativo por metro quadrado em Lisboa e Porto, e o desolador abandono do interior rural.

Os contrastes são chocantes. Lado a lado com os brilhos da ribalta tecnológica da Web Summit, onde se derretem milhões e se passeiam vaidades, persiste um país atrasado, sem poder reivindicativo, pouco letrado, que consome nas televisões doses maciças de futebol, de novelas e de aviltantes reality shows. É o lado B de uma sociedade que sobrevive numa pobreza envergonhada, longe de S. Bento e das sedes dos partidos. 

O Estado está a falhar vezes demais – e voltará a falhar sempre que houver alguma catástrofe. A prevenção não existe – ou é uma figura de estilo (servindo a governantes para se exibirem a limpar matas com as televisões à vista…) – e a Proteção Civil já deu sobejas provas de descoordenação e de inépcia para acudir nas aflições.

Em Borba, depois de o Presidente da República ter concluído, filosoficamente, que «é óbvio que não cai uma estrada pública, (…)  sem que depois se apure as causas daquilo que sucedeu», o primeiro-ministro em exercício nem se deu à maçada de deslocar-se ao local. Em contrapartida, repetiu-se na frieza e na insensibilidade perante as vítimas, dissertando na base de ‘contas de mercearia’. Não tem emenda. 

O Governo serve para ‘dar boas notícias’, sem nenhum pudor na propaganda, e desaparece nos momentos críticos. 

Para António Costa, em Borba «não há evidências» de «responsabilidades do Estado». Pois não. Os serviços públicos bem alertaram para o perigo iminente há anos, mas o relatório ficou obviamente fechado na gaveta da negligência burocrática. Com ele, a culpa é sempre de terceiros. Mesmo se o Estado – central e local – não tiver sido alheio ao desastre anunciado. 

Cresce o sentimento de que as populações estão indefesas, à mercê das contingências do destino.

 

Ainda recentemente houve uma emergência que, por pouco, não acabou em tragédia. Um avião saído das OGMA, após uma revisão profunda, ficou descontrolado sobre a região de Lisboa, e só por milagre – e pela perícia e sangue-frio dos pilotos – não se despenhou, conseguindo aterrar em Beja. Desta vez, os deuses protegeram-nos.

Depois do susto, desceu a habitual cortina de silêncio, como se não tivesse acontecido nada. Claro que estão em curso investigações, cujo desfecho, em matéria de responsabilidades, não será, provavelmente, muito diferente de Pedrógão, de Monchique, de Tancos ou de Borba.

E, no entanto, poderíamos estar hoje a lamentar um dos piores desastres da história da aviação civil em Lisboa, devido à «falha crítica nos sistemas de navegação e de controlo de voo», como foi definida por um perito citado nos jornais, depois de o aparelho ter passado um mês em manutenção nas OGMA de Alverca, onde o Estado dispõe de 35%, numa parceria com a Embraer (o fabricante do avião em causa). 

 

Houve alguma posição oficial da tutela ou declaração de algum dos administradores que representam o Estado nas OGMA? Zero. 

O novo ministro da Defesa, Gomes Cravinho, limitou-se a elogiar o papel da Força Aérea na complexa operação de aterragem de emergência. E ‘moita-carrasco’ sobre as OGMA, apesar de o relatório do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) referir, preto no branco, que «as evidências recolhidas até ao momento (…) sugerem a existência de falhas na configuração no sistema de controlo de pranchamento da aeronave, consistentes com eventuais perturbações desse sistema durante ações de manutenção». Parece uma suspeita grave, mas até agora, que se saiba, ficou tudo nas encolhas.   

O Governo pinta todos os dias um país moderno para fora – e ‘modernaço’ nos costumes -, enquanto por dentro está precário e não raramente obsoleto. 

Pior. Este Governo convenceu-se (com o silêncio cúmplice do PCP e do Bloco, e a fraqueza da oposição à direita) que bastam uns quantos fogachos e umas vitualhas para calar os descontentes e compensar alguns ‘enguiços’. Lembra sapatos de verniz com meias rotas. O ‘populismo’ e a revolta também começam por aí…

 

Nota em rodapé – Em setembro de 2016, José Sócrates avançou com uma ação contra o juiz Carlos Alexandre, porque este dera uma entrevista à SIC na qual dissera, designadamente, que «não tem contas bancárias em nome de amigos». Uma ‘singularidade’ que o ex-primeiro-ministro se apressou a considerar «uma cobarde e injusta insinuação baseada na imputação que o Ministério Público me fez no referido processo» (sic).

Em novembro de 2018, num procedimento célere, o Conselho Superior da Magistratura instaurou um processo disciplinar contra Carlos Alexandre por entender, segundo o Expresso e o Observador, que aquele juiz pode ter violado o dever de reserva em declarações à RTP, nas quais referiu que «há uma aleatoriedade que pode ser maior ou menor consoante o número de processos que existem entre mais do que um juiz», o que foi entendido como uma crítica ao sorteio eletrónico, que atribuiu a instrução do processo de Sócrates (e de outros arguidos) na Operação Marquês ao juiz Ivo Rosa, após algumas atribulações informáticas.

Moral da história: é a Justiça a funcionar…

 

Nota em rodapé 2 – Depois de ficar despojado da sede histórica da avenida da Liberdade, e de ter passado a semanário em papel ao domingo, o centenário Diário de Noticias viu agora confirmados os problemas de tesouraria pela administração da empresa. 

Conclui-se que a opção de sair ao domingo está a ser um fiasco, o que nem surpreende, sabendo-se que, independentemente dos conteúdos editoriais, o dia escolhido é o que tem menos pontos de venda em funcionamento. 

Mas não se pode exigir a Daniel Proença de Carvalho, o chairman da empresa, que seja capaz de ‘reverter’ o definhamento do jornal, quando já teve talento q.b. para concretizar o negócio imobiliário do edifício-sede, sem que o Município ou o Ministério da Cultura abrissem a boca ou revelassem o menor incómodo, apesar de tratar-se de um património classificado da cidade. 

Moral da história: quem vier atrás que apague a luz e feche a porta….