Por 250 gramas de manteiga

Por entre as filmagens de 1900 e Saló – Os 120 Dias de Gomorra, Bertolucci e Pasolini organizaram um jogo de futebol

Bernardo Bertolucci acabou de exercer o seu inalienável direito à morte e não nos resta mais do que respeitá-lo por isso. Como qualquer italiano que se preze gostava de futebol e, pelos vistos, também de manteiga, embora essa história seja um bocado esconsa. O seu colega Pier Paolo Pasolini era completamente fanático pelo jogo dos ingleses. Aliás, foi por causa do futebol que ambos deixaram de se falar. O episódio remonta a 1975. Um filmava Saló e os 120 dias de Gomorra e ou outro 1900. Decidiram formar equipas escolhidas entre colaboradores, atores e figurantes para uma partida. Os rapazes de 1900 de Bertolucci ganharam e Pasolini foi aos arames. Soltou uma série de palavrões no seu mais espesso sotaque bolonhês e acusou o colega de ter utilizado dois ou três jogadores profissionais do Parma para desequilibrar a contenda. Depois virou-lhe as costas e mandou-o a um lugar não muito limpo.

Ora bem, já quanto à manteiga, não sei se a equipa de Bertolucci venceu. A dele e de Marlon Brando, claro. Até porque Bernardo acabou por ficar mais famoso por causa de uma barra de manteiga, ou margarina, se calhar, do que por causa da intensidade psicológica de o Último Tango em Paris. Muitos anos mais tarde, com a paciência já bastante estafada em relação ao assunto, diria: «Vamos lá, de uma vez por todas, por um fim a esta ridícula confusão. Só quis gravar a reação espontânea de Maria perante a utilização da manteiga. Só isso! Ela leu o roteiro. Sabia que ia ser uma cena de violência! Só não sabia da manteiga».

Um pequeno pormenor, portanto.

Por seu lado, Maria Schneider, não perdoou o abuso de manteiga no esfíncter: «Senti-me humilhada e violada. Tanto por Brando como por Bernardo. E, no final, Marlon nem foi capaz de me pedir desculpa». Brando foi sempre um cara de pau: deve ter ficado convencido de que a moça adorara a cena e até quereria repeti-la. Estava enganado. «Felizmente, foi apenas um ‘take’», suspirou Maria.

Parece, assim, um pouco grotesca toda a prosa que se escreveu sobre umas gramas de manteiga que serviram de lubrificante para uma cena de sexo anal, mas afinal tudo se passou em Paris, e Paris tem tendência para os exageros. «Paris c’est une blonde/Paris reine du monde», cantava Maurice Chevalier.

 

O meu amigo Francisco Silva, que foi chefe da TAP em Estocolmo e Frankfurt, e agora goza a reforma na sua Madeira, a ilha da ternura, vivia em Paris no início dos anos 70. Ou seja, na altura em que Bertolucci, Brando e Maria Schneider por lá andavam a filmar o Último Tango. Marlon Brando era louco por foie gras e frequentava o restaurante de um camarada do Chico, também português, ali na zona das Galerias Lafayette, para os lados do Boulevard Haussmann, no neuvième, como eles gostam de dizer. Pois o amigo do Chico garante que foi ele que forneceu a manteiga ao Brando. Parece que, certa noite, meteu-se-lhe na cabeça que, depois de uma dose cavalar de foie gras e vinho tinto, precisava de levar consigo uns 250 gramas de manteiga. Levou. E o português do restaurante, encolhendo os ombros, terá ficado convencido de que ele ainda iria para casa comer umas torradas antes de dormir. Aí ainda o rabiosque da Maria Schneider estava em descanso.

Pode haver milhares de versões sobre a forma como a manteiga foi parar ao bolso do sobretudo de Marlon Brando e de como de lá saiu já sabemos todos com que finalidade. Eu gosto desta. E de imaginar o Brando, malandro, descendo uma das ruas do Quartier du Faubourg-Montmartre, assobiando baixinho a música do Gato Barbieri e apalpando, volta e meia, o cartucho de papel pardo de forma libidinosa. Era um cara de  pau, mas tinha senso de humor.

 

Não há registo que Brando tenha sequer posto os pés num jogo de futebol. Pior para ele. Quando foi convidado para fazer de Stanley Kowalski em Um Eléctrico Chamado Desejo, tratou de se inscrever na academia de boxe de Rocky Graziano. Treinou duro e, no fim, foi deixar-lhe uns bilhetes  para a estreia. Quando Rocky olhou para a tela, exclamou: «Porra! Mas é aquele miúdo que aparece por lá nos treinos!». 

Já tinha o nariz partido. Aquele nariz partido que faz parte da história da sétima arte. Durante os ensaios, gostava de provocar um dos rapazes que trabalhava nos bastidores. Ensaiavam uns golpes, meio a brincar. Até que Brando resolveu ser Brando e desafiou o moço para um combate a sério. Teve azar. Levou um murro em cheio no nariz que o fez espichar sangue como uma torneira e lhe deixou os olhos negros. No hospital, não quis que o operassem. Irene Selznick, a produtora do filme, deu-lhe razão: «Aquela nasal torto dá-lhe sex appeal. Dantes era demasiado bonito». Foi um soco que Maria Schneider não se importaria de ter dado…