O programa que “ninguém acreditava ser possível” faz 25 anos

Fundadora do Programa Troca de Seringas, que desapareceu em outubro, é homenageada esta manhã numa cerimónia que assinala os 25 anos da iniciativa. “Os números eram catastróficos”, lembra João Goulão

Odette Ferreira, a fundadora do Programa Troca de Seringas, nunca escondeu nem o orgulho nem os receios. “Foi um projeto que ninguém acreditava ser possível. Era visto como dar seringas a uns maltrapilhos, com as pessoas cá fora a dizer que ainda por cima roubavam e os íamos ajudar”, contou numa entrevista ao i em 2013. Ultrapassadas as resistências, teve mais sucesso do que poderia imaginar. Odette Ferreira, que contribuiu para a descoberta do vírus da sida do tipo II, é homenageada esta manhã numa cerimónia comemorativa na Estufa Fria, em Lisboa. 

O programa completou 25 anos em outubro, mês em que farmacêutica e professora universitária desapareceu aos 93 anos de idade. Contextualizando os receios da época, o consumo de drogas era crime em Portugal e os números do VIH continuavam a aumentar. Surgiu a ideia de um programa de distribuição de kits a toxicodependentes para diminuir o risco de contágio através da partilha de seringas contaminadas. Odette Ferreira, então presidente da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida, lembrou-se de desafiar as farmácias – “sempre tive a ideia de que estavam desaproveitadas”, conta num livro da Associação Nacional das Farmácias de 2008 – para serem o local de distribuição e sensibilização, afinal estavam na linha da frente do contacto com o público. Depois do sim da ANF foi preciso reunir com o Procurador-Geral da República Cunha Rodrigues, para que do ponto de vista legal fosse possível o Estado ajudar esta população a ter consumos com menos riscos, mesmo que ilegais. Seguiu-se a luz verde do governo – era ministro Arlindo de Carvalho – e o programa ganhou escala nacional: mais de 90% das farmácias aderiram. Os resultados não tardaram: a infeção por VIH/Sida neste grupo começou a cair mais rapidamente do que em qualquer outro.

Um balanço divulgado ontem pelo ministério da Saúde revela que os novos casos de VIH entre as pessoas que utilizam drogas injetáveis passaram de 57,3% do total nos anos 90 para 1,8% em 2017. Desde o início do programa, em 1993, foram distribuídos 57,4 milhões de agulhas/seringas e 30 milhões de preservativos.

João Goulão, diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), era em 1993 responsável pela área das dependências no Algarve. Olhando para trás, considera o impulso dado por Odette Ferreira determinante para inverter os “números catastróficos” do VIH no país. O grupo que era preponderante na epidemia deixaria de o ser, também pelo investimento em educação e programas de substituição opiácea com metadona, lembra. Ao mesmo tempo, abria-se caminho para a descriminalização do consumo de drogas em 2001, medida que tornou Portugal uma referência mundial. “O Programa Troca de Seringas acabou por contribuir para um ambiente social favorável a que se seguisse esse caminho, de encarar o consumo e as dependências mais como um problema de saúde do que como um problema de justiça”, disse ao i o responsável, sublinhando que a classe farmacêutica foi exemplar na adesão.

Francisco George, que acompanharia o programa na Direção Geral de Saúde, admite que sucesso pode ter sido uma surpresa para alguns, mas o certo é que vingou. “Comprovadamente contribuiu para  redução da incidência do VIH/sida e foi um exemplo para a comunidade internacional. E foi socialmente aceite, o que mostra que afinal a sociedade estava mais preparada do que muitos poderiam pensar“, disse ao i o ex-diretor-geral da Saúde.