Sobre a eutanásia, de quem é a dignidade e a quem pertence a escolha

Luís Paulino Pereira (LPP), em crónica no Sol de 15 de novembro, apresenta os argumentos do costume contra a eutanásia mas com um paternalismo e autoritarismo especialmente vincados. Desde logo recorrendo a palavras como: não [tenho] dúvidas, nunca, sempre, inaceitável, opor-se incondicionalmente, absoluto e não tem direito… Tudo isto quando considera, afinal, o assunto irrelevante…

Luís Paulino Pereira (LPP), em crónica no Sol de 15 de novembro, apresenta os argumentos do costume contra a eutanásia mas com um paternalismo e autoritarismo especialmente vincados. Desde logo recorrendo a palavras como: não [tenho] dúvidas, nunca, sempre, inaceitável, opor-se incondicionalmente, absoluto e não tem direito… Tudo isto quando considera, afinal, o assunto irrelevante ou inexistente (saberá que uma pessoa não encontra o que não conhece ou não procura?). Apesar de, nas apresentações do seu último livro e no prefácio do penúltimo, insistir em expor esta sua visão teológica contra a eutanásia. Tanta dedicação a um não assunto?

O raciocínio básico de LPP é simples, apesar de escondido: o (bom) médico atua de acordo com a vontade divina (de certo modo replicada no código deontológico dos médicos) e o doente só tem que se confiar a um bom médico. Não interessa, pois, se o doente considera o seu sofrimento inaceitável e os seus valores e direito a ver respeitadas as suas convicções, atropelados… Na sua ingenuidade, LPP acha que os cuidados paliativos resolvem tudo: num estudo belga recente, de Dierickx, a maioria dos doentes que recorreu à eutanásia tinha estado (ou estava) em cuidados paliativos. Outro dos mitos destruídos por este estudo foi que a maioria dos doentes que não tiveram cuidados paliativos (na Bélgica, disponíveis para quase todos) foi porque não quiseram.

Diz LPP que se deve viver «custe o que custar» e morrer de forma «natural». No limite, a Medicina nem sequer devia ser usada, conquanto contrária à apologia cristã do sofrimento, pois não? Como se o processo de morte, tantas vezes cruel, lento e doloroso, confiado à natureza (e ao acaso, afinal), não pudesse ser de outro modo humanizado, conciliado com os valores e a noção de dignidade do próprio doente e não a expressão da ideologia e proselitismo religiosos do seu médico, leia-se LPP.

Os médicos que são publicamente a favor da eutanásia têm constatado que os seus doentes se abrem muito mais sobre os seus medos e angústias em relação ao fim da vida. Uma lei que despenalizasse a eutanásia alargaria o leque de opções da pessoa doente – não obrigando ninguém mas, contudo, erguendo uma «segunda» porta de saída, até nas unidades de cuidados paliativos. Quem decide é o doente. O médico tem esse dever humanitário para com o seu doente mas, contudo, e bem, é-lhe permitido invocar a objeção de consciência. Porque é que se pode colocar um doente em sedação contínua progressiva (o novo eufemismo para a sedação terminal) por decisão unilateral do médico, mas não se pode – de formas análogas – antecipar a morte do doente se for ele a pedir! Isto é que não é justo, razoável nem aceitável. 

O juramento hipocrático que LPP refere – sinal dos tempos – já não é como ele diz. Agora lê-se, na nova Declaração de Genebra (2017), pela primeira vez e antes do respeito «máximo» (não absoluto) pela vida: «Respeitarei a autonomia e a dignidade do meu doente». 

Quando LPP diz que os médicos não deviam ser tidos nem achados nesta questão, ignora que eles querem ser ouvidos e querem ajudar estes doentes: já no inquérito aos oncologistas sobre a eutanásia, de Ferraz Gonçalves, feito há mais de 12 anos atrás, cerca de 40% destes especialistas era a favor da despenalização; num estudo europeu recente eram cerca de 90% os jovens estudantes médicos favoráveis à despenalização da eutanásia. Ou seja, em 10-15 anos, serão a maioria dos médicos portugueses. Sondagens recentes sugerem que a maioria da população já é favorável à despenalização da eutanásia. A ética não é a lei do mais forte mas também é democrática e evolutiva, aberta à nova sensibilidade humanista. Estamos muito longe da idade das trevas para onde alguns nos querem reenviar.

Por fim, gostaríamos de sugerir aos leitores que queiram aprofundar estas questões a leitura dos últimos livros de Hans Küng e de João Semedo, por exemplo. Neste, em especial, lê-se: «se somos livres e responsáveis pelas nossas escolhas durante a vida, por que não havemos de sê-lo aquando do processo de morte? (…) Existirão sempre pessoas para quem a dignidade no fim de vida é aguardar pela chegada da morte e outras para quem a valorização da vida e a sua dignidade significam escolher o momento e a maneira como querem morrer, quando a morte já está anunciada» [Morrer com Dignidade – A decisão de cada um, pp. 38-40]. Trata-se de, nas palavras de José Gil, uma autêntica «reapropriação da vida» da pessoa perto do seu fim. E continuamos a falar de vida.