Nova fotobiografia de Gandhi editada em Portugal mostra a vida extraordinária do líder indiano

Uma nova fotobiografia de Gandhi editada em Portugal pela Bizâncio mostra a vida extraordinária do líder indiano em toda a sua complexidade e até nos seus aspetos contraditórios. Considerado santo por milhões, em casa era visto pela família como um ditador.

Nova fotobiografia de Gandhi editada em Portugal mostra a vida extraordinária do líder indiano

N a estação de Pietermaritzburg, a cerca de 50 quilómetros de Durban, África do Sul, existe hoje uma placa a assinalar um acontecimento que se deu ali há precisamente 125 anos. Na altura, ninguém poderia adivinhar que um incidente comum advogado franzino de apenas 23 anos poderia vir a ter as repercussões que teve. «Perto desta placa, M. K. Gandhi foi expulso de um compartimento de primeira classe na noite de 7 de junho de 1893. Este incidente mudou o curso da sua vida. Lançou-se na luta contra a opressão racial. A sua não-violência ativa iniciou-se nesse dia». A expulsão da carruagem da primeira classe, que acabaria por ajudar a definir o curso da História quer da África do Sul, quer da Índia e do Império Britânico, é um dos episódios descritos em Gandhi – Fotobriografia, de Pramod Kapoor, recentemente lançada em Portugal pela Bizâncio (que também editou a autobiografia A Minha Vida e As Minhas Experiências Com a Verdade).

Nascido a 2 de outubro de 1869 em Porbandar, Mohandas Karamchand Gandhi era filho do primeiro-ministro daquele estado. Segundo a tradição indiana dos casamentos combinados, aos sete anos ficou comprometido e aos treze casou-se com Kasturba, uma rapariga apenas seis meses mais velha.

O jovem casal vivia, segundo o costume, na casa dos pais do marido. Com o patriarca acamado, era Gandhi que estava em permanência à sua cabeceira a fazer-lhe companhia, a cuidar dele e a massajar-lhe as pernas. Numa das poucas ocasiões em que se ausentou, para ir ter com a mulher, um criado bateu-lhe à porta do quarto com a notícia de que o pai tinha dado o último suspiro. Gandhi ficou devastado com culpa. «A vergonha do meu desejo carnal no momento crítico da morte do meu pai é uma mancha na minha vida que nunca fui capaz de superar ou esquecer», escreveu na sua autobiografia. Oepisódio poderá ter influenciado decisivamente a sua atitude perante o sexo. Mas a castidade só viria mais tarde.

Depois de intensa discussão familiar, e apesar da oposição firme dos parentes mais conservadores, ficou decidido que o jovem Mohandas, então com 19 anos, iria estudar Direito para Inglaterra. Além da licenciatura no University College, em Londres descobriu o vegetarianismo (foto 1) e tentou assimilar as maneiras de um gentleman. Teve aulas de dança, aperfeiçoou o seu inglês e vestia belos fatos de estilo ocidental.

Filho de um primeiro-ministro (ainda que de um minúsculo estado indiano) e educado em Londres, tinha um alto conceito de si próprio. É natural, por isso, que quando um revisor lhe disse que não podia viajar em primeira classe num comboio na África do Sul, para onde tinha ido com a missão de representar um comerciante indiano ali estabelecido, Gandhi tenha recusado teimosamente. Orevisor acabaria por obrigá-lo a sair do comboio a meio da noite, na tal estação de Pietermaritzburg – era inverno no Hermisfério Sul e o jovem advogado teve de dormir ao relento.
Mais tarde, quer em navios quer em comboios, haveria de fazer questão de viajar sempre em terceira classe, para ver como vivia e em que condições viajava o povo. Nas carruagens indianas, ficaria impressionado com o lixo, a sujidade e o hábito das pessoas de cuspirem para o chão.

O maior homem do mundo…

Na África do Sul Gandhi começou a mostrar as suas qualidades como advogado – em 70 casos perdeu apenas um – e revelar uma invulgar capacidade para promover acordos entre fações desavindas. Lutando pelos direitos dos indianos, que eram considerados cidadãos de segunda, dos zulus, dos mineiros e, em geral, dos desfavorecidos, criou uma aura de líder. Foi logo aí que ganhou o cognome de Mahatma, ‘grande alma’.

Explica a Autobiografia agora publicada que «Gandhi tinha muitos apoiantes entre a população branca da África do Sul». Entre eles, Hermann Kallenbach (foto 2), «um arquiteto alemão abastado, alto, encorpado e com um bigode retorcido. […] Conheceram-se por acaso, mas, devido ao seu interesse comum pelo budismo, acabaram por se tornar grandes amigos». Em 1910 Kallenbach ofereceu à causa de Gandhi uma grande propriedade de 445 hectares fora de Joanesburgo. Gandhi batizou-a como Quinta Tolstoi, o nome do seu autor favorito (ficara deslumbrado com o livro do escritor russo sobre Jesus).

O próprio Gandhi era frequentemente comparado a Jesus, inclusive por homens da Igreja. O clérigo John Haynes Holmes chamou-lhe «o maior homem do mundo».

… e os seus defeitos

Mas até o maior homem do mundo tinha as suas falhas. A vida familiar ficava para segundo plano e quando, em 1908 Kasturba esteve às portas da morte, a sua missão absorvia-o tanto que se disse impossibilitado de ir vê-la. Dois anos antes tinha iniciado um período de abstinência sexual que durou até à sua morte. Ainda assim, como refere Pramod Kapoor, «a vida sexual ou sexualidade de Gandhi tem sido alvo de muitos debates e críticas, sobretudo o seu yagna [em que punha à prova a sua vontade] pessoal, que envolvia dormir nu com algumas mulheres que lhe eram próximas, incluindo uma sobrinha-neta adolescente».

As principais faltas de Gandhi para com a família ficaram expressas numa carta do seu filho Harilal, que o pai expulsou da comunidade Phoenix, datada de 1931 (e integralmente reproduzida na Fotobiografia):

«O pai nunca foi generoso e paciente com as nossas faltas. Nunca refletiu nos nossos direitos e capacidades; nunca olhou para a pessoa que vive em nós. A sua vida e ações são muito rigorosas. Não me considero capaz de viver uma vida como a sua. Para o pai, um filho é igual a qualquer outra pessoa. Se houver dois acusados (um dos seus filhos e outra pessoa), o pai acharia injusto considerar culpada a outra pessoa. É justo um filho sofrer, mas, infelizmente, eu não tenho sido capaz de suportar tal sofrimento».

Terminava com estas palavras pungentes: «No meu íntimo, o meu único desejo é ser seu filho – se for suficientemente bom para ser seu filho».

Acusado publicamente pelo pai de beber álcool, de frequentar casas de reputação duvidosa e de contrair dívidas, Harilal teve uma vida conturbada, acabando por converter-se ao Islão.

De facto, como nota o autor, Gandhi era «mestre na resolução de conflitos, forjava acordos com os seus críticos mais ferozes, mas conseguia ser extremamente ditatorial quando lidava com os seus familiares mais próximos ou com os seguidores». Estes acusavam-no de ter um coração de pedra e o próprio Gandhi penitenciava-se frequentemente pela forma como tratava Kasturba, chegando a aconselhar os filhos a não tratarem assim as suas mulheres.

O juiz curva-se

Gandhi e a família regressam à Índia em 1915 (foto 3). Quatro anos depois, ele tem um sonho em que vislumbra uma forma de contestar o domínio britânico e o tratamento humilhante a que eram sujeitos os indianos:a desobediência civil. A 6 de abril de 1919 começa uma greve geral que deixa as cidades paralisadas. «A força física não é nada comparada com a força moral e a força moral nunca falha».

Lord Reading, vice-rei da Índia, em 1921, descreve-o assim: «Teria passado por ele na rua sem o olhar uma segunda vez. Mas quando fala, causa outra impressão. É direto e exprime-se bem, num inglês excelente». Mas a sua resistência ao império, quer através de iniciativas deste género, quer expressa em artigos de jornal, tem consequências. 
Em 1922 é julgado por promover a desobediência às autoridades britânicas e declara-se culpado. «Não desejo esconder deste tribunal que pregar a insatisfação em relação ao atual sistema de governo se tornou quase uma paixão para mim. […] Por conseguinte, eis-me aqui a solicitar e a submeter-me de bom grado à maior pena que possa ser-me infligida por atos que, na lei, são crimes deliberados e que, a meus olhos, constituem o dever mais elevado de um cidadão».

Antes de proclamar a sentença, o juiz curva-se perante o réu. «Mesmo as pessoas que discordam de si politicamente encaram-no como um homem de elevados ideais e com uma vida nobre ou mesmo santa». Condena-o a seis anos de prisão, mas acrescenta que se a pena fosse reduzida pelo governo, «ninguém ficaria mais satisfeito do que eu».

A prisão só faz por aumentar a lenda de Gandhi. Ainda não tinha cumprido dois anos de pena quando uma apendicite aguda quase o mata. Muito debilitado, o governo liberta-o incondicionalmente. Em 1924 os seguidores voltam a temer pela sua vida quando anuncia um jejum de três semanas para expiar os pecados dos que tinham cometido atos de violência em seu nome. O missionário Charles Andrews chama-lhe «o acontecimento mais impressionante da história recente da Índia». OMahatma resiste e quebra o jejum ao fim de 21 dias com um copo de sumo de laranja.
Nessa década, «para onde quer que fosse, era esperado por hordas em delírio» (foto 6), escreve Pramod Kapoor. «Até as pessoas educadas achavam que ele tinha poderes divinos. Uma das vezes, a multidão era tão grande e anárquica que ele correu o risco de ser esmagado».

Gandhi, continua Kapoor, «utilizava a adulação das massas como instrumento para obter donativos para a sua causa. Convencia os abastados com quem se encontrava e jantava a contribuírem para a causa dos pobres, e até as mulheres e as crianças a doarem as suas joias». Participava em festas para poder recolher donativos (foto 5) e, se lhe pediam, oferecia fotografias autografadas a troco de algumas rupias.

O aproximar do ano de 1930 assiste ao intensificar da campanha pela independência. A 26 de janeiro desse ano é proclamada, de forma unilateral, a Declaração de Independência da Índia. No ano seguinte é convidado para uma visita a Inglaterra para negociar a questão.

‘O rei tinha quanto bastasse para nós os dois’

«Envergando uma tanga e um xaile, Mahatma Gandhi esteve presente numa receção formal hoje no Palácio de Buckingham e esteve perante o rei ao qual tem tentado durante anos retirar o vasto império indiano», escrevia um jornal britânico de 5 de novembro de 1931. «O príncipe [de Gales] tinha vindo de Liverpool de avião para participar na majestosa tea party no palácio real para a qual foram convidadas cerca de 600 pessoas. Mas antes que a cerimónia tivesse chegado a meio Gandhi abruptamente abandonou o palácio, uma vez que não tem paciência para reuniões sociais e que as conversas habituais nestas ocasiões o aborrecem».

Gandhi só aceitara comparecer perante o Rei Jorge V se este não colocasse entraves ao facto de usar as suas roupas tradicionais. Quando, depois do encontro, o líder indiano foi questionado acerca da sua indumentária, respondeu: «O rei tinha quanto bastasse para nós os dois».

Por causa disso Churchill, que lhe tinha um ódio mortal, chamar-lhe-ia sarcasticamente «faquir nu». Treze anos depois, em 1944, Gandhi dirigia-lhe esta carta: «Terá alegadamente manifestado o desejo de esmagar o ‘faquir nu’, como se diz que costuma referir-se a mim. Há muito que tento ser um faquir e na verdade nu – uma tarefa mais difícil. Como tal, considero a expressão um elogio, ainda que não intencional».

Independência agridoce

O processo de negociação da independência foi complicadíssimo e marcado por acontecimentos trágicos, não apenas por causa da relutância do Império Britânico em perder a sua joia da coroa, como por causa das divisões étnicas no seio do território indiano (foto 4). Os muçulmanos não queriam ceder aos hindus, e vice-versa. Gandhi desejava uma convivência pacífica no mesmo país – o que se revelaria impossível – e, como qualquer árbitro imparcial, era mal visto por ambos os lados. Por fim, acabou mesmo por sugerir que Jinnah, o líder dos muçulmanos (e fundador e primeiro presidente do Paquistão) «fosse convidado a formar um governo muçulmano para governar toda a Índia». Os hindus veem essa como uma traição.

A independência, pela qual lutara toda a vida, tem para ele um sabor agridoce, pois acarreta também a divisão do território entre a Índia, dos hindus, e o Paquistão, dos muçulmanos. A separação, que é como uma cirurgia que separa dois gémeos siameses, é agendada para a meia-noite de 14 para 15 de agosto de 1947. No processo, geram-se tumultos gravíssimos que dão a Gandhi mais um motivo de tristeza:os confrontos provocam um número indeterminado de mortos, estimado entre 200 mil e um milhão, e a maior migração da História da Humanidade.

«No dia 12 de janeiro de 1948, Gandhi decide jejuar até à morte». Ao mesmo tempo, um grupo de hindus fanáticos planeia assassiná-lo. A 30 de janeiro, depois de uma reunião, dirigiu-se para as orações diárias. As suas últimas palavras foram: «Passam dez minutos das cinco, tenho de me apressar». Nathuram Godse aguardava-o com uma pistola escondida. Minutos depois, quando Gandhi chegou suficientemente perto dele, o homicida disparou três tiros à queima-roupa.

Tinha morrido o homem que, nas palavras de Einstein, «as gerações vindouras dificilmente acreditarão que tenha andado sobre esta terra». Gandhi pode nem sempre ter vivido como um santo, mas certamente morreu como tal.