Os homens da rua

Em  1975 ainda existiam os chamados ‘homens da rua’. A exemplo do que acontece hoje em dia com os ‘precários’ no porto de Setúbal, constituíam um universo de pessoas que se juntavam de manhã na Casa do Conto, a ver se havia trabalho, situação retratada no clássico Há Lodo no Cais, de Elia Kazan, com…

Em  1975 ainda existiam os chamados ‘homens da rua’. A exemplo do que acontece hoje em dia com os ‘precários’ no porto de Setúbal, constituíam um universo de pessoas que se juntavam de manhã na Casa do Conto, a ver se havia trabalho, situação retratada no clássico Há Lodo no Cais, de Elia Kazan, com Marlon Brando.

Não existiam ainda operadores portuários, e a lógica do sistema era muito simples: apostavam na natureza flutuante do trabalho portuário para arranjar trabalho. 

É fácil entender que um porto não é uma linha de montagem, como a da Autoeuropa, por exemplo, onde entram numa ponta os componentes das viaturas devidamente alinhados e sequenciados, e sai na outra ponta um automóvel montado. A um porto comercial afluem diversos tipos de navios e de tráfegos, com sazonalidade nalguns casos e irregularidade noutros, que dão origem à tal variação no número de navios em porto e consequente variação na procura de mão-de-obra. 

Nos dias em que o pessoal sindicalizado não ‘chegava para as encomendas’, recorriam os chefes de estiva aos ‘homens da rua’. Os trabalhadores ‘precários’ de que agora se fala são a versão moderna daquela reserva de mão-de-obra. Houve naturalmente evolução positiva na sua situação: a precariedade atual é obviamente menos ‘violenta’ que então, com melhor nível de subsídios e apoios sociais que na segunda metade do século XX. 

Das questões suscitadas pela atual situação em Setúbal destaca-se uma: é viável economicamente a integração de todos os ‘precários’ nos quadros das empresas? O mundo evoluiu para outro nível de especialização, pelo que a resposta não será a mesma para todos os tráfegos. O discurso instalado nos media parece dar a impressão de que a resposta é simples, que se trata de uma mera questão laboral numa qualquer unidade de produção industrial, o que não corresponde à realidade.

Há que analisar as coisas mais em detalhe. 

Numa abordagem ortodoxa do lado da procura (os navios e tráfegos que materializam), existem pelo menos 12 tipos diferentes (navios-tanque, porta contentores, de carga rolante, graneleiros, de carga geral, etc); e no que respeita a tráfegos, existem dois tipos: de linha regular e os chamados navios de tramping, os navios ‘vagabundos’, que vão transportando cargas ao sabor da tal sazonalidade e irregularidade dos negócios de comércio internacional que compõem o mercado do shipping.  

Todos e cada um deles dão origem a procura de mão-de-obra com características e padrões específicos.

O caso da Autoeuropa nem parece dos mais difíceis de resolver, dado o fluxo regular de carga. As dificuldades parecem estar mais na organização e enquadramento jurídico da atividade, e sua compaginação com a legislação laboral e da atividade portuária. 

Ou seja, com recurso a contratos a termo, as empresas parecem ter encontrado uma solução em que enfrentam a sazonalidade da atividade – mas este regime esbarra ao fim de determinado período de tempo com um impedimento legal, findo o qual seriam obrigados a incorporar esse pessoal nos quadros. 

Qual a solução? Rescindir contratos e recorrer a caras novas, a outro contingente de pessoal que inicia um novo ciclo até expirar o número máximo de renovações permitido por lei.

Para mim, é um claro desajuste, uma tentativa de generalização da legislação laboral em setor com especificidades bem marcadas. Os media, por sua parte, também não ajudam, dada a iliteracia que costumam evidenciar nestes temas.