Um bilhete para Santa Helena

A França ensinou-nos a ter o coração ao pé da boca, a reagir, a trazer cá para fora todas as inquietações e a provocar o futuro.

Não vale a pena invocar os exemplos históricos. São tão intensos e marcantes que as suas consequências fazem hoje parte das nossas vidas.

Mas vale a pena refletir sobre o que vem acontecendo.

Nas brumas da memória ficou o desaparecimento do partido comunista francês. Já poucos se recordam mas Marchais marchou há muito tempo. Foi o primeiro aviso.

Agora sobreveio o ‘ras de marée’ dos partidos tradicionais.

Estavam longe, não compreendiam o que se passava, perderam a ligação com as pessoas, não conseguiram reformar-se.

Um movimento, ancorado na referência da convergência gaulista e inspirado tanto no mal estar como nas novas exigências, tanto na recusa da esquerda e da direita como na confiança na Europa, trouxe Macron.

Um sopro novo, dir-se-ia.

O problema é que, de perda em perda, veio apenas resistindo.

É cruel este tempo, faz com que tudo dure muito pouco.

Macron conseguiu, num ápice, colocar contra si a imensa maioria dos franceses.

Entre os que apenas pretendem melhorar a sua vida, os que pretendem coisas contraditórias e os que pretendem ‘tout casser’ encontra-se uma verdadeira multidão que faz explodir a rua.

Está ultrapassada a mediação dos partidos e a sindical. A custo, esquerda e direita tentam apanhar o comboio a apoiam a contestação, sem se confundirem com os seus autores. Não há interlocutores institucionais. Não se sabe quem representa quem. Não se sabe com quem o poder deve falar. Donde, ignorar-se a responsabilidade do compromisso.

Sabe-se, vagamente, que os contestatários usam os ‘gilets jaunes’ e tanto basta.

Quem se manifesta  na rua são os que se acham esquecidos. Aqueles que se encontram longe dos grandes centros e aqueles que, integrando-os, não saem das suas periferias.

Olham para o lado e desesperam de conseguir melhorar a sua vida e sofrem  a angústia de não perceber se o problema é a globalização, se o problema são os impostos, se o problema é o aquecimento global ou se o problema é a taxa de carbono.

O que não ignoram é como a vida se torna cada vez mais difícil e como veem voar rios de dinheiro entre as perdas da banca e os negócios ruinosos, entre a  prosápia dos ricos e a fome da miséria.

E atravessam-nos sentimentos contraditórios da solidariedade com os que chegam às praias e, apesar de tudo, querem viver vidas como as suas e com os que servem o terror e distribuem o medo por mor de um ideal sanguinário de retaliação.

Do que se apercebem é do crescimento dos Estados e da penúria das respostas.

Eles sabem que, no meio de uma Europa em ebulição, se sentem perdidos e como o poder dos poderes é incerto vagueando entre a loucura negocial e a construção dos novos impérios.

Temem, pois. E sentem que se chegou a um momento limite.

Querem a reforma, mas não a reforma de que muitos falam, querem a reforma das suas vidas e querem que alguém a pague.

Macron  corre o risco de ser o primeiro a pagá-las.

Com um pouco mais de esforço tirará férias em Santa Helena.

Sem glória, do outro lado da Mancha, celebra-se o Waterloo da Europa.

por Carlos Encarnação