O meu primeiro livro de Poesia

Causa-me estranheza que nestes últimos tempos, quando se fala dos grandes poetas portugueses do século XX, o nome de António Gedeão raramente seja referido. Será por ter escrito alguns dos seus melhores poemas em rima e a rima se ter tornado uma espécie de anátema do modernismo? Será por culpa do seu próprio sucesso, por…

Causa-me estranheza que nestes últimos tempos, quando se fala dos grandes poetas portugueses do século XX, o nome de António Gedeão raramente seja referido. Será por ter escrito alguns dos seus melhores poemas em rima e a rima se ter tornado uma espécie de anátema do modernismo? Será por culpa do seu próprio sucesso, por a ‘Pedra Filosofal’ se ter tornado tão conhecida que fez olvidar o resto da sua obra? Será por se tratar de um homem das ciências e os puristas das letras verem-no como um intruso? Ou será, ainda, por causa de uma certa ingenuidade que caracteriza os seus poemas?

Curiosamente, e porque falei em ingenuidade, a última vez que ouvi uma referência a Gedeão foi há umas semanas num programa de rádio para crianças. E tinha passagens tão geniais que fiquei cheio de vontade de lê-lo de novo.

Tive dificuldade em encontrar o poema em causa pois, embora falasse do poderoso Filipe II e da sua vida opulenta, chamava-se prosaicamente ‘Poema do fecho éclair’.

Além desse, ao folhear a sua Obra Completa, reunida num volume de capa encarnada da Relógio d’Água,  reencontrei alguns velhos conhecidos, como ‘Homem’, um poema tão certeiro, conciso e essencial que não tive dificuldade em aprendê-lo de cor, ‘Poema para Galileu’ ou ‘Poema da malta das naus’. Todos eles constavam do primeiro livro de poesia que comprei na adolescência, que era justamente uma antologia de Gedeão. E, passados tantos anos, queria saber se ainda conservavam intacto o seu encanto.

Fernando Pessoa escreveu um dia que tinha pena de já ter lido Os Cadernos de Pickwick, de Charles Dickens, porque isso o impedia de voltar a sentir o que sentira quando os lera pela primeira vez. Evidentemente, quando voltei a ler os poemas de Gedeão também já não fui surpreendido como fora na adolescência. Mas na Obra Completa descobri outros que me provocaram o mesmo prazer e o mesmo sorriso, como ‘Calçada de Carriche’, de que transcrevo um excerto:

«Veste-se à pressa,

desengonçada;

anda, ciranda,

desaustinada;

range o soalho 

a cada passada;

salta para a rua,

corre açodada,

galga o passeio,

desce a calçada, 

chega à oficina 

à hora marcada, 

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga».

Ufa, que correria! Quem imaginava que uma simples leitura nos podia deixar assim sem fôlego?