A ausência que provou a irrelevância do Nobel

No ano em que a ausência do Nobel da Literatura foi um prémio para os leitores, muitos preferiram especular e firmar outros desses consensos que dizem tão pouco à literatura.

A ausência que provou a irrelevância do Nobel

Vai longe o tempo em que o ‘fator Nobel’ se impunha na hora de aferir a grandeza de um escritor, mas este foi o ano em que a mística cortina que separava aquele reservado comité dos restantes mortais caiu, e pior do que o escândalo sexual que fez desabar o castelo de cartas, a ferida que levará mais tempo a cicatrizar será a da ingenuidade daqueles que viam na Academia Sueca um último vestígio da velha elite cultural europeia. Ao invés de um conselho de sábios, ao serem expostos, os 18 membros do comité revelaram-se personagens tão falíveis como qualquer um de nós, tão mesquinhos nas suas lutas de poder, capazes das mesmas pulhices e intrigas que qualquer júri de uns jogos florais da província, com a diferença que, no seu caso, a atenção de todo o mundo pesa sobre aqueles 18 suecos, esperando-se que consigam servir de árbitros no pantanoso mundo da literatura. 

Ao mesmo tempo, no ano em que o Nobel da Literatura sofreu o mais rude golpe à sua reputação, na sua ausência fomos lembrados da aura de eleição suprema que este adquiriu. E contra isto, de pouco vale a amargura de alguns que se cansaram de ser preteridos, porque, no final de contas, este ritual nunca foi outra coisa do que um ato de coroação simbólica, e, por isso, um teste à credulidade de cada época, ao conjunto de pessoas que preferem ceder ao apelo de juízos universais a formarem os seus. E isto sendo evidente como, em questões tão complexas, tão vastas e subjetivas como é a literatura, o consenso é o que menos interessa. 

Num artigo de opinião no The New York Times, Tim Parks notava que a excitação de tentar adivinhar quem seria o galardoado deste ano foi substituída pela ansiedade de tentar perceber se desta vez nem haveria prémio. Depois do anúncio de que a entrega seria adiada para 2019, ano em que haverá não um mas dois escritores premiados, Parks notava que a verdadeira comédia estava no facto de, ao invés de uma crise de confiança na arrogância dos membros vitalícios daquele comité para tomarem uma decisão desta magnitude, foi preciso uma série de acusações de abusos sexuais, impelidas pelo movimento #MeToo, para que o Nobel da Literatura visse o seu prestígio arrasado. «Não é preciso refletir muito para se chegar à conclusão de que um prémio internacional de literatura nunca teve, nem nunca poderia ter tido credibilidade de espécie nenhuma», nota o romancista e crítico norte-americano, e remata: «É absurdo.»

Em 2015, numa entrevista ao jornal i, Alberto Manguel dava sinal também da sua irritação com o frenesim mediático que este galardão ainda gera anualmente. «O Prémio Nobel não tem qualquer importância. Perdeu toda a credibilidade. Achei ótimo quando o atribuíram a Tranströmer [2011] ou a Doris Lessing [2007], mas quando o dão a Dario Fo… Ele é um homem simpático, mas essa atribuição torna o prémio completamente destituído de sentido.» Manguel ilustrava assim o que acaba por acontecer com qualquer literato, que ainda que possa concordar com várias das escolhas da Academia Sueca, precisa apenas de ver o prémio nas mãos de um escritor que o desmereça para o sentir como um erro clamoroso, e algo que, aos seus olhos, não só rebaixa o juízo da Academia Sueca, mas a desmascara. Nessa mesma entrevista, recorria ainda àquele que é o argumento que, quando é discutida a legitimidade do Nobel da Literatura, aparece como o seu longo cadastro de terríveis desatenções, falhas que nenhum leitor poderia deixar de desculpar àquele comité. Como dizia Manguel, «quando vemos que Kafka, Proust, Borges, Joyce, nenhum deles recebeu o prémio… » Portanto, além do que nos diz a lógica – ou seja, que nenhum júri, por mais imparcial e melhor assessorado que esteja, poderia alguma vez apreciar com justiça toda a literatura de todo o mundo –, impõe-se ainda o argumento empírico, que nos mostra que, se a seleção que a Academia Sueca tem vindo a fazer desde 1901 tivesse de jogar contra uma equipa daqueles que foram por ela ignorados, muito provavelmente estes últimos apresentariam em campo uma formação bem mais temível, e com muito melhores chances de inscrever mais nomes no quadro de honra da posteridade.

Num artigo publicado no El País, em fevereiro de 1993 – e que se encontra reunido no volume Literatura e Fantasma, publicado entre nós pela Relógio d’Água –, Javier Marías desfazia as ilusões de grandeza que alguns escritores ainda nutrem em relação à obtenção do Nobel como forma de se encaminharem para a morte «com o pequeno consolo de se acreditarem planetariamente inesquecíveis graças ao prémio». O romancista espanhol liderou este ano as apostas de muitos leitores, críticos e editores que, aproveitando a baixa que Estocolmo meteu, acorreram a preencher esse saudável vazio, com o ruído dos seus votos. Naquele texto usava a imagem da roleta da memória, para nos dizer que, em relação à maioria dos mais antigos galardoados, era evidente o engano dos escritores com pretensões de alcançar a imortalidade com base na distinção sueca: «Há já décadas que um croupier expedito, insolente e desavergonhado os expulsou para uma pobre mesa de bilhar de um salão recreativo de aldeia». Logo depois, Marías passava a elencar um deprimente elenco de escritores que, hoje, na melhor das hipóteses apenas são recordados na sua própria terra ou país.

Ainda assim, há exceções. E se, de entre os galardoados pela Academia nos últimos anos, podemos dizer que boa parte deles não deverá entreter ilusões de imortalidade literária – Kazuo Ishiguro, Patrick Modiano, Mo Yan, são alguns exemplos –, também se pode dizer que outros, mesmo que não sejam lidos daqui a 20, 50 ou 100 anos, isso será antes de tudo uma perda para os vindouros – casos de Svetlana Alexijevich, Tomas Tranströmer, Herta Müller, Le Clézio ou Doris Lessing. Já o assunto Bob Dylan, merece destaque como uma imposição da cultura de massas, sendo certo que, se há que reconhecer-lhe notáveis méritos literários na sua expressão musical e artística, como notou Leonard Cohen, foi como se a Academia Sueca tivesse querido «dar uma medalha ao monte Evereste por ser a montanha mais alta». Foi evidente o embaraço de Dylan, e clara ficou também a tentativa do Nobel da Literatura de ganhar relevância para lá do cada vez mais restrito espaço de irradiação da literatura.

Se Javier Marías era bastante duro na avaliação da seleção Nobel, reconhecia, ainda assim, que se encontravam lá «uns quantos que ainda jogam na mesa com as suas fichas de cor brilhante e fazem com que a triste lista não chegue a ser desolada». A seguir dava exemplos: Kipling e Yeats e Shaw, Bergson e Pirandello e Mann, Hesse e Gide e Eliot, Faulkner, Russell e Hemingway, Pasternak e Camus. Bastavam estes, segundo o espanhol, «para que haja jogadores até 2010», mas logo acrescentava alguns galardoados mais recentes, como Kawabata, Beckett, Montale e Bellow ou Neruda, Aleixandre, Canetti e García Márquez, Simon, Brodsky, Paz e Walcott, e adiantava: «é de supor que alguns destes nomes ajudarão a manter o casino aberto até um pouco para além dessa data».

Estamos em 2018, e como bem se vê, mesmo tendo a operação Nobel sido (provisoriamente) desmantelada, são menos aqueles que se mostram ansiosos com a hipótese de o maior escândalo na história da Academia Sueca poder levar à suspensão deste ritual absurdo – ou, pelo menos, a uma séria reflexão crítica –, do que aqueles que mal podem esperar para que o espetáculo seja retomado, preferência que mostra como, hoje, há cada vez mais uma amálgama entre a vida cultural e os fenómenos de massas, com tantos leitores e literatos a confundirem-se com os fãs de uma qualquer modalidade desportiva, e que chegam a esquecer-se, como Louis Menand disse num artigo em 2005, na New Yorker, que é a própria literatura que está em risco se o diálogo e discussão à sua volta não conseguirem ser mais preponderantes do que os prémios e toda a fanfarra, que não gera outra coisa senão uma sensação de ressaca, nos dias a seguir, e um enorme vazio no resto do ano.