Memórias e Histórias

A escrita de Afonso de Melo rompe pela noite fora como uma onda que se alevanta contra a solidão ontológica do cronista e depois se desfaz no areal da sua vida interior fustigada pelos desconcertos do mundo

1. Este livro de crónicas anacrónicas, de Afonso de Melo, intitulado O Outro Nome Que A Vida Pode Ter (adiante designado por O Outro Nome) em nada desmerece da qualidade do primeiro, Tira O Cavalo Da Frente, 2017, pela riqueza dos recursos estilísticos, pela cultura eficientemente mostrada ao longo das suas páginas, pelos admiráveis retratos de seres humanos muito diversos. Todavia, o retrato que mais me comoveu foi o do rosto do cronista. É o retrato de alguém mergulhado numa espessa solidão a quem só a escrita protege da corrente do infrene rio da vida, um rio de desencantos. Essa escrita é frequentemente impregnada pela angústia de quem se debate com a precariedade das palavras, com os fugidios e por vezes velados «poderes originais da criação» (Herberto Helder). É uma escrita em que o autor ambiciona, como Cesário Verde atingir a perfeição: «Se eu não morresse nunca! E eternamente/Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas!».

Tem sido esse desígnio utópico que Afonso de Melo tem procurado ao longo da vida com a consciência de que é uma ambição inútil, porventura suavizada pela quotidiana, séria e rigorosa mineração dos «poderes criadores da originalidade» (Herberto Helder).

2. Este livro é formado por dez segmentos narrativos, mas não é acerca do seu conteúdo que vos vou falar. A substância de O Outro Nome chegará a cada um dos leitores do modo como a múltipla circunstância pessoal percecionar, no ato da leitura, aquilo que o cronista diz. Porém, o que vou escrever não tem a ver com o que as crónicas dizem, mas com o que elas a mim me dizem.

3. Elas chegam-me imbuídas de um profundo sentido ético; nelas se reflete a vontade do autor de deixar um livro que contribua para o enriquecimento da visão do mundo dos humanos. De que modo? Através de uma escrita apoiada em valores, no amor às pessoas e às coisas, no respeito por quem o merece, no repúdio pela vilania, pelo dogmatismo e fanatismo, na condenação dos procedimentos desonestos, cínicos ou falsos, no agrado com que recebe tudo o que de bom e de belo as pessoas e as coisas oferecem, no amor à liberdade, na defesa da justiça social e da solidariedade, na certeza de que «a thing of beauty is a joy forever» (Keats), na capacidade de admirar quem ou aquilo que merece admiração, apanágio de espíritos superiores a quem a mesquinhez repugna e que vivem nos antípodas dos medíocres a quem nunca vi admirar alguém ou o que quer que fosse.

4. A escrita de Afonso de Melo rompe pela noite fora como uma onda que se alevanta contra a solidão ontológica do cronista e depois se desfaz no areal da sua vida interior fustigada pelos desconcertos do mundo, pelo inexorável correr do tempo que traz consigo os sinais do envelhecimento e deixa cada vez mais distante o nunca mais da infância, tempo em que o narrador não sentia o peso dos mortos queridos e nem as conflitualidades lhe atormentavam as horas do quotidiano. 

Estes textos são impressivos testemunhos «de experiências vividas» (Edmund Husserl), daí que as páginas deste livro esmaltem a profunda atenção que o seu autor, tal como Fernando Pessoa dá «à importância misteriosa de existir» ou, dito de outro modo, pela consciência que tem «da terrível importância da vida».

Para Afonso de Melo, escrever é um imperativo que se apossa de quem, por vezes, se sente desencantado com a imagem deprimente e obscura que o mundo lhe oferece. Então a mão do escritor sobrepõe-se à mão do jornalista e a sua língua literária atinge a mais alta qualidade. Acontece isso quando revisita os lugares da infância e da adolescência, seja Águeda, o rio ou a casa dos seus antepassados onde, sob os tetos que encimam um alto pé direito, paira a sábia bonomia do avô Joaquim e em que na varanda larga, virada a sul, ecoa, desde a infância de Afonso, a voz de sua mãe gritando o seu nome, seja a praia da Barra, seja o arquipélago da Madeira onde para sempre ficou no agressivo cascalho negro de Machico a suave, profunda, exigente ternura de seu pai, seja o Olival com «o som dos pavões; o caramanchão dos coelhos brancos e dos porquinhos-da-Índia, a marmelada a arrefecer no parapeito da janela da cozinha; a Tão a tilintar a sineta que chamava para o almoço; a minha avó Manuela a tocar piano na sala de xadrez; a varanda de madeira…». E havia os ciprestes no jardim em cuja copa fusiforme e verde-escura se refugiou porventura, imagino eu, «o azul-Olival dos olhos da tia Mena: fechados para sempre». São dos momentos mais significativos deste livro, estes em que o narrador evoca os amados mortos que lhe batem à porta das palavras ou esses outros em que se revisita a si mesmo envolto por uma angustiada nostalgia ou vestido de uma terna ironia.

5. Afonso de Melo confessa que tem uma necessidade imperiosa de viajar o que lhe permitiu, na sua peregrinação pelo mundo, ir enriquecendo o seu modo de ver e de sentir. É assim, com o espírito a transbordar de vivências e reflexões, que o cronista se fecha no seu local de trabalho, protegido pela capa da solidão, com o veemente propósito de trasladar para o universo das palavras o peso inextricável e o azebre da vida que tumultuam dentro de si.

Falemos agora dos espaços do seu afeto ainda não mencionados. Comecemos por Lisboa e suas noites com cães a ladrar pelas ruas desertas. Mencionemos ainda os inúmeros países e cidades onde estacionou como turista ou no cumprimento de tarefas profissionais de que destaco a Rússia e Moscovo. Elejamos por fim como um espaço privilegiado a velha Índia, onde por vezes pressinto que Afonso de Melo se poderá refugiar para sempre, mergulhado nas suas memórias, no povoado mais a oriente do Oriente. Maneira serena de se livrar do agressivo e perturbante roncar do desafinado motor do mundo.

Porém, O Outro Nome abre outra alternativa, a de que o aconchego da casa de Alcácer do Sal com sua varanda debruçada sobre o manso correr das águas do rio Sado lhe dê o sossego necessário para cumprir a missão que os deuses lhe atribuíram: escrever, hoje e amanhã, de noite e de dia, escrever sempre como se houvesse uma prescrição demoníaca obrigando-o a beber a solidão para depois a cuspir no terreno das palavras, que ora é luxuriante ora sáfaro.

A pressão da produção literária operou uma metamorfose que explicitarei, parafraseando Herberto Helder: «As crónicas escrevem o cronista». É o que de mais alto sei dizer de um escritor.

18. dez. 2018