Médico do INEM investigado

Ao serviço do INEM, António Peças recusou fazer o helitransporte de vários doentes. O serviço de urgência cessou contrato e o médico está a ser investigado por várias entidades, incluindo o MP.

A história fez correr muita tinta esta semana: o INEM afastou o médico António Peças por se ter recusado várias vezes a fazer o transporte de doentes de helicóptero.

Tudo remonta a 2017. Pelas 17h30 de dia 29 de outubro, o Hospital de Évora contactou o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) para pedir o transporte para Lisboa de um homem de 74 anos que estava na urgência com um traumatismo craniano e uma hemorragia cerebral. A gravidade do estado de saúde do idoso determinou que o CODU acionasse o helicóptero do INEM de Évora para acelerar o transporte, mas o aparelho nunca levantou voo. Os registos das chamadas, aos quais o Observador teve acesso, revelam porquê: contactado pelo CODU, o médico responsável pelo helitransporte diz que está com uma gastroenterite e que vai ao hospital para fazer medicação. «Depois eu digo-lhe alguma coisa depois de fazer a medicação lá no hospital. Está bem?», assegura o médico António Peças ao operador do CODU. O operador, por sua vez, passa a mensagem ao Hospital de Évora. A médica responsável volta a ligar ao CODU menos de uma hora depois para saber, afinal, se o transporte aconteceria ou não e dizendo que António Peças ainda não tinha ido ao hospital. O CODU acabou por decidir acionar uma ambulância dos Bombeiros Voluntários de Évora para fazer o transporte.

Mas a história parece não ter sido, afinal, bem assim. Notícias publicadas no mesmo dia contrariam a versão de António Peças: o diretor da corrida de Touros que decorria desde as 17h desse dia na Arena D’Évora sofreu uma série de queimaduras no balneário, antes do início do evento e, de acordo com o portal toureio.pt, dedicado à tauromaquia, foi «prontamente assistido na enfermaria da praça pela equipa médica afeta ao espetáculo: o Dr. António Peças, José Ribeiro da Cunha, técnico de emergência médica pré-hospitalar e o enfermeiro Gonçalo Louro».

O caso foi denunciado anonimamente há cerca de um ano, numa carta que um “grupo de médicos do Hospital de Évora preocupados” remeteu para o INEM, o Hospital de Évora, o Ministério da Saúde e a Ordem dos Médicos.

O SOL tentou contactar António Peças, mas sem sucesso. No entanto, ao Observador o médico negou que tenha sido feito qualquer pedido de transporte de helicóptero. «É verdade que prestei assistência ao diretor da corrida, mas eu não estava de serviço à corrida de touros», diz ainda, afirmando que de seguida ter-se-á ido embora. Ainda assim, fotografias tiradas nesse dia mostram que o médico estava na arena a assistir à corrida de touros.

Quanto à denúncia anónima, acabou por dar frutos. O INEM confirmou ao SOL que «teve conhecimento de uma denúncia que envolvia o Médico António Peças, tendo decidido pela abertura de um processo de inquérito». Concluído o inquérito, «e, de acordo com as recomendações do Instrutor, [o processo foi] remetido às seguintes entidades: IGAS, Ordem dos Médicos e Hospital de Évora». A partir das mesmas recomendações, o INEM informa ainda que «decidiu cessar a prestação de serviços do Médico António Peças no INEM a partir do dia 1 de fevereiro de 2019».

 

Outros casos

No processo de inquérito levado a cabo pelo INEM foram investigadas outras duas ocorrências envolvendo o médico, denunciadas por duas médicas ao INEM: o episódio de uma mulher de 37 anos com um aneurisma, que o médico mostrou resistência em transportar, e o caso de um homem de 82 anos que sofreu um AVC e que António Peças rejeitou transportar.

O Observador teve acesso às gravações das chamadas entre os hospitais, o CODU e o médico António Peças e em ambas torna-se evidente que o profissional do INEM começa sempre por duvidar da indicações do CODU. Visível também é a opinião que os colegas têm do médico, que tenta «sempre não sair», ouve-se.

No caso da mulher, que aconteceu em 13 de Abril de 2017, o CODU contactou António Peças pelas 23h30 para pedir o transporte para o Hospital de Santa Cruz. O caso era grave, mas o médico não parece convencido com a argumentação da médica do Hospital de Faro, onde a doente estava internada há 48 horas e onde não há o serviço de cirurgia necessário. Pediu então para faltar com o Hospital de Santa Cruz, questionando a urgência, e é informado de que a operação seria feita no tempo da manhã por uma questão de segurança, uma vez que a equipa estaria mais fresca.

António Peças termina a conversa com Santa Cruz e Faro, voltando a contactar o CODU, que reitera a urgência do transporte. Mas perante o questionamento do médico, a médica do CODU avalia se existiam outras hipóteses, para depois voltar a ligar ao médico do INEM: «Para nós é para sair», diz. António Peças ainda discorda do tempo que a médica diz que a viagem irá demorar, mas acaba por aceitar fazer o transporte – uma hora depois de o pedido ter sido feito, segundo documentos consultados pelo Observador. Chegado a Faro, o médico informa o CODU de que o estado de saúde da doente se deteriorou e que ocorreu uma possível rutura do aneurisma. O CODU contactou então o Hospital de Santa Cruz para informar, e a médica que se tinha disposto a aceitar a doente determina que já não existem condições para o transporte. A mulher de 37 anos acabou por perder a vida sem nunca ter saído de Faro.

Cerca de um mês depois, em 16 de maio de 2017, o médico recusa mesmo transportar um doente. O homem, de 82 anos, tinha dado entrada no Hospital de Évora pela Via Verde AVC e a instituição contactou o CODU para pedir o transporte para o Hospital de São José, em Lisboa, onde seria possível fazer o tratamento para remover o coágulo que levou ao AVC. A questão que se colocava, nesse caso, era que o tratamento só seria eficaz se feito, no máximo, seis horas depois do início dos sintomas – pelas 22h45, segundo relata o Observador. O homem chegara ao hospital às 00h48 e o CODU e o hospital determinaram que o helitransporte seria a melhor opção. O CODU contactou então António Peças e o médico rejeitou fazer o transporte, discordando que por ar seria mais rápido do que por terra. O doente acabou por chegar a Lisboa às 05h15, de ambulância, e o tratamento acabou por não ser feito.

O SOL contactou o Hospital de Évora para saber se planeia avançar com alguma medida, mas não obteve resposta até ao fecho desta edição.

Depois de a polémica estalar, também o Ministério Público (MP) abriu investigação. «Confirma-se a existência de um inquérito no DIAP de Évora que corresponde à situação relatada. Tal inquérito encontra-se em investigação e não tem arguidos constituídos», respondeu a Procuradoria-Geral da República ao SOL. A Ordem dos Médicos, por sua vez, confirmou ao SOL que encaminhou as conclusões do inquérito do INEM para o Conselho Disciplinar, para análise.