O direito à asneira…

Gomes Cravinho preferiu nomear ‘incendiários’ que só existem na sua cabeça, quando se esperava que esclarecesse o assalto a Tancos

Quando um ministro assenta arraiais numa rede social a imitar Trump e debita disparates, fica-se de sobreaviso em relação ao seu perfil para o lugar. Se o autor desse inesperado tweet ocupa a pasta da Defesa, empossado há escassos meses, e tem currículo como diplomata, académico e, até, governante ao tempo de Sócrates, então é motivo para ficar seriamente apreensivo.

João Gomes Cravinho, o ministro em causa, perdeu as estribeiras com a entrevista à TVI do líder de um movimento de extrema-direita (o NOS) num programa de entretenimento – e não foi meigo, ao considerar a iniciativa do operador «não muito diferente de quem ateia incêndios pelo prazer de ver as labaredas». A asneira é livre. E o bom senso, às vezes, esgueira-se pela porta dos fundos.

O caso despertou a celeuma expectável, com os ‘indignados’ do costume, que precisam com urgência de encontrar alguém por cá mascarado de Le Pen, para gritarem: «Fujam, que vem aí o lobo!». Esgotados os ‘demónios’ neoliberais, recuperam-se os ‘fascismos’, que andavam esquecidos desde o PREC de 1975.

O certo é que o efeito conjugado do tweet do ministro, de petições inflamadas e de declarações dos ‘patrulheiros’ de serviço, ofereceu de bandeja ao assumido ‘nacionalista’ uma incomum projeção mediática que, em boa verdade, não merecia.

À cautela, as direções de informação e de programas da TVI, depois de protestarem o seu amor ao pluralismo e à importância da liberdade de expressão, apressaram-se a ‘tirar o cavalinho da chuva’ e a suspender a rubrica, como se tudo tivesse acontecido à sua revelia. Motivo invocado: «Quebra de confiança». É caricato, mas dá para tudo.

Entretanto, no outro extremo do espetro partidário, O Militante, jornal editado pelo PCP, dedicou uma capa épica aos 60 anos da revolução cubana, com a «superioridade do socialismo» em título – e, que se saiba, nenhuma boa alma se incomodou com a linguagem própria dos tempos da Guerra Fria.

Tão-pouco pestanejaram quando a atual embaixadora cubana em Lisboa se desdobrou em entrevistas ao Avante! – outra pérola doutrinária do PCP – e à Lusa, nas quais defendeu ideias tão originais como a supremacia do partido único, declarando, urbi et orbi, que se «em Cuba surgisse outro partido, seria um partido financiado pelos Estados Unidos».

Esta luminosa conceção ‘democrática’, que o PCP perfilha sem hoje o dizer, ilustra bem o pensamento dominante no partido, que se revê nos regimes cubano, norte-coreano ou venezuelano, como exemplos virtuosos dos ‘amanhãs que cantam’. Eclipsaram-se na Europa, mas mantêm-se intactos na Soeiro Pereira Gomes.

Mas nada disto choca as cabeças bem-pensantes, que se calam diante do êxodo de milhares de pessoas de uma Venezuela em colapso, cujo PIB, entre 2013 e 2017, afundou 37% (prevendo o FMI que caia mais 15% este ano), segundo uma reportagem dramática da insuspeita BBC sobre as consequências funestas do regime totalitário de Maduro, apoiado por Cuba e raros mais.

A mesma BBC já tinha revelado há meses, com base num relatório da ONU, que em 2017 a Venezuela ocupou o quarto lugar no mundo na lista de países de onde provém a maior quantidade de novos pedidos de refúgio – e o primeiro, se considerada apenas a América Latina.

Segundo o relatório, então divulgado pela Agência da ONU para os Refugiados (Acnur) sobre as tendências globais em deslocamentos forçados, a crise migratória na Venezuela já está quase ao nível do fluxo de refugiados no Mediterrâneo,

Estranhamente, António Guterres, enquanto secretário-geral da ONU, tão inquieto e dedicado à causa dos refugiados, tem mantido um piedoso distanciamento em relação à tragédia humanitária venezuelana, na qual se inclui meio milhão de portugueses e luso-descendentes.

Algo que também não apoquenta nem tira o sono ao ministro Gomes Cravinho, apesar do seu passado de secretário de Estado nas Necessidades.

Quando se esperava do novo titular da Defesa que esclarecesse, em definitivo e sem evasivas, o rocambolesco assalto a Tancos, assim como a kafkiana devolução das armas com alegados encobrimentos, Gomes Cravinho preferiu nomear ‘incendiários’ que só existem na sua cabeça.

Eis uma conceção tosca e precipitada sobre um episódio que estaria condenado a ‘morrer na praia’ num programa televisivo de fait-divers, não fosse o ministro, por instinto de defesa, querer mostrar serviço às esquerdas. Provocou a ‘ignição’… e ficou queimado.

 

Nota em rodapé – O Presidente da República entendeu pertinente interromper uma reunião em Belém para telefonar a uma entertainer de um programa da SIC a desejar-lhe «muitas felicidades» em direto. A entertainer emocionou-se e arrecadou audiência. E os portugueses, perceberam o gesto?…