Terá sido a idade da pedra uma idade de pau?

«Imediatamente lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e tornou a ver». Assim surge descrita nos Atos dos Apóstolos a conversão de Paulo de Tarso, que antes deste episódio perseguia cristãos com o mesmo fervor que mais tarde iria dedicar à evangelização. Foi exatamente com essa sensação de me caírem escamas dos olhos que…

«Imediatamente lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e tornou a ver». Assim surge descrita nos Atos dos Apóstolos a conversão de Paulo de Tarso, que antes deste episódio perseguia cristãos com o mesmo fervor que mais tarde iria dedicar à evangelização. Foi exatamente com essa sensação de me caírem escamas dos olhos que li certas passagens de Sapiens – de animais a deuses. O livro do israelita Yuval Noah Harari foi-me recomendado como «obrigatório». E, de facto, merece essa designação.

Professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, Harari tornou-se uma celebridade imediata com a publicação deste livro em 2014. Hoje é considerado um autêntico guru dos nossos tempos e requisitado para dar palestras em todo o mundo sobre temas que vão da Idade da Pedra às tecnologias que deverão revolucionar as vidas dos homens do futuro.

E, por falar na Idade da Pedra, vejamos uma dessas passagens do seu livro que tiveram para mim a força de uma iluminação: «Como é óbvio, não temos registos escritos do tempo dos recoletores e as provas arqueológicas consistem, sobretudo, em ossos fossilizados e utensílios de pedra. Os artefactos feitos de materiais mais perecíveis – com a madeira, o bambu e a pele – sobrevivem apenas em condições únicas. A ideia comum de que os seres humanos pré-agrícolas viviam numa era de pedra é um erro que tem por base esta propensão arqueológica. A Idade da Pedra deveria, mais corretamente, ser chamada Idade da Madeira, já que a maior parte dos utensílios usados pelos antigos caçadores-recoletores era feita de madeira».

Sapiens está cheio de ‘heresias’ deste género que nos mostram facetas da História que ignorávamos ou que nos obrigam a reavaliar aquilo que pensávamos saber, propondo uma espécie de ‘verdade alternativa’ – no bom sentido, claro.

Para ser inteiramente objetivo devo reconhecer que houve também passagens que me irritaram por acusarem algum pendor ideológico. Ainda assim, não chegam para beliscar o feito de condensar 70 mil anos de História da Humanidade em menos de 500 páginas e explicá-los de forma límpida, desafiante e quase sempre capaz de nos surpreender. A esta notável concisão e originalidade, Harari junta um talento raro para desencantar informações insólitas. Como esta: «Durante décadas, o alumínio foi muito mais caro do que o ouro. Na década de 1860, o imperador Napoleão III de França encomendou um faqueiro [de alumínio] para ser utilizado pelos seus convidados mais distintos, enquanto os visitantes menos importantes tinham de comer com garfos e facas de ouro».

Clareza, concisão, ideias desafiantes e informação saborosa. O que mais poderíamos pedir? Por estas e por outras, e apesar de algumas reservas a certa altura, Sapiens deixou-me completamente rendido.