Quanto tempo demoraria a distinguir 100 peixes quase iguais num tanque?

Software desenvolvido na Fundação Champalimaud explora potencialidades da inteligência artificial e abre portas a estudo de comportamento animal e de novos medicamentos

Imagine um aquário com uma centena de peixes muito parecidos. Quanto tempo levaria a distingui-los de forma a conseguir seguir as suas diferentes movimentações? Uma equipa de investigadores da Fundação Champalimaud desenvolveu um software capaz de resolver o quebra-cabeças em pouco mais de uma hora, um resultado sem precedentes neste tipo de ferramentas. O sistema, apresentado esta semana nas páginas da revista “Nature Methods”, pode ser usado para estudar dinâmicas de grupo em animais mas também facilitar o teste de novos medicamentos, explicou ao SOL Gonzalo de Polavieja, investigador principal do Laboratório de Comportamento Colectivo.

Gonzalo de Polavieja, que trabalha em Portugal desde 2014, explica que o sofware idtracker.ai é diferente de outros sistemas de rastreamento pela abordagem ao problema: o sistema não se foca na distinção de cada indivíduo e posterior seguimento mas na distinção a partir da análise de um grupo com recurso a inteligência artificial, o que de outra forma seria impossível em tão pouco tempo, quer para o cérebro humano quer para computadores convencionais.  

A instituição explicou como em comunicado. “Utilizando as imagens de vídeo dos peixes-zebra num tanque, a primeira rede na cadeia de processamento das imagens aprende a distinguir, ao nível de cada pequeno ponto nelas visível, aqueles que correspondem a apenas um animal e os que correspondem a vários.”

A partir dos resultados da primeira, “a segunda rede neural aprende então a atribuir um nome (ou um número) a cada manchinha nas imagens que contém apenas um peixe. Por outras palavras, aprende de facto a identificar individualmente cada animal. Este reconhecimento baseia-se nas características únicas de cada peixe-zebra".

"Para nós, todos peixes-zebra parecem iguais, mas isto prova que são todos diferentes uns dos outros", observa de Polavieja. Por último, são usados dois algoritmos convencionais. “Um para ganhar alguma certeza sobre os poucos indivíduos cuja identidade ainda é algo incerta”, diz de Polavieja“, e o outro para determinar quem é quem quando os caminhos dos peixes se cruzam – isto é, quando as suas trajetórias aparecem sobrepostas no vídeo.

Os resultados falam por si: em mais ou menos uma hora, o idtracker.ai identifica todos e cada um dos 100 peixes-zebra que aparecem no vídeo, a cada momento, com quase 100% de precisão. “Se mostrarmos à rede [neural] uma parte do vídeo que nunca viu e perguntarmos-lhe: 'quem é aquele?', a rede irá atribuir corretamente um nome (ou um número) a esse peixe 99,997% das vezes”, diz de Polavieja.

O investigador já tinha feito uma primeira versão do software quando trabalhava em Espanha, no Instituto Cajal, e diz que a ferramenta foi usada por mais de 200 publicações cientificas.

"Na altura, só conseguíamos seguir o rasto a dez animais", recorda. Esta nova versão, que explorou as potencialidades da inteligência artificial, permite abranger até 100 peixes.

Software open-source

Para que serve? O investigador sublinha que há duas direções na investigação que pretendem seguir no Programa Champalimaud de Neurociências: por um lado, perceber melhor a dinâmica de grupo dos animais e estudar de que forma aprendem em conjunto. Por outro lado, o desenvolvimento do software permite explorar o campo da aprendizagem automática. "Estamos interessados tanto na inteligência coletiva como na inteligência artificial”, diz Gonzalo Polavieja.

No campo das aplicações, o investigador explica que para já o sistema de rastreamento não foi testado em seres humanos, o que afasta cenários em que possa ser utilizado em sistemas de vigilância e segurança, já que exigiriam também um refinamento para poder ser usado em ambientes mais complexos. “Se puséssemos as pessoas em laboratório, talvez funcionasse. Mas não funcionaria para analisar uma multidão num ambiente de rock”, diz ao i. 

Num horizonte mais imediato, pode servir de suporte a investigação clínica e novos medicamentos com recurso a modelos animais, mais uma vez seguindo a mesma lógica de captar de forma mais fácil a sua interação. “Um dos cenários é ser usado por exemplo pela indústria farmacêutica para testar moléculas relacionadas com o comportamento social.” Trata-se de um software de código aberto, que fica agora à disponibilidade da comunidade científica, diz Polavieja.