Correr o mundo desde a Casa Branca

Durante cinco anos, entre 2012 e 2017, Beck Dorey-Stein foi uma das estenógrafas  da Casa Branca e correu o mundo com a  administração Obama a bordo do Air Force  One. Contou tudo em livro, até porque  largou o emprego dois meses após a chegada de Trump à Sala Oval. ‘É um incêndio lá dentro, posso…

Correr o mundo desde a Casa Branca

Quando Beck-Dorey não apareceu na primeira entrevista de trabalho de um anúncio a que tinha respondido na Craigslist – um conhecido portal de anúncios norte-americano – não se sentiu propriamente mal. Afinal, já tinha uma mão cheia de trabalhos que lhe permitiam sobreviver em Washington, cidade «cheia de aspirantes a políticos» onde as «sanduíches insípidas» custam 11 dólares e «as criaturas» locais te perguntam qual é o teu trabalho «não por curiosidade», mas para perceber qual a tua «importância», «conhecimento», «poder ou riqueza», tudo atributos que podem ajudar – leia-se ajudá-los – a «subir na carreira». Beck era então professora em part-time num colégio, empregada numa loja de roupa desportiva, empregada de mesa e explicadora. Quando, apesar de ter faltado à entrevista, a voltaram a contactar – o dito anúncio era descrito como o trabalho de estenógrafa para uma sociedade de advogados – abriram o jogo: afinal, tratava-se de um emprego na Casa Branca, onde «iria viajar com o Presidente em deslocações pelo país e internacionais».

A história mais parece o guião de um filme, que até vai ser, mas será mesmo a ficção a imitar a vida de Beck que, entre entre 2012 e 2017 se tornou numa das estenógrafas oficiais da Casa Branca, cujo trabalho é gravar e passar para o papel tudo o que é dito pela administração nos momentos oficiais. E, segundo Beck, trabalhar na Casa Branca durante este período foi vibrante, especial e, numa visão muito americanizada da coisa, sexy.

Ao longo da narrativa acompanhamos os amores e desamores – incluindo um caso com Jason, um superior hierárquico, membro da administração –, temos vislumbres de um Obama que, em privado, não é assim tão diferente da imagem que passou cá para fora, corremos hotéis, entramos em visitas de Estado e, talvez acima de tudo, vemos um panorama inédito do Air Force One, a bordo do qual Beth correu o mundo com a restante comitiva – a que os próprios chamavam de ‘bolha’. Durante este período, foi guardando a experiência em diários e são esses retalhos, tecidos em volta da sua própria história pessoal, que nos traz em Do Canto da Sala (ed. Vogais). E se no início do livro caricatura as diretrizes para aspirantes a estenógrafas – «respirar silenciosamente ou não respirar de todo», «viver para digitar e não digitar para viver», «aparecer cedo e não dizer nada», – no final havemos de chegar à conclusão que Beth, com o seu sentido de humor pouco discreto, sapatos rosa choque e um colar dourado com um vistoso crocodilo se guiava apenas superficialmente pelas ‘normas’.

Beck deixou o seu trabalho dois meses após Donald Trump tomar posse. Atualmente está a escrever o seu segundo livro que, desta vez, nada tem a ver com a sua própria vida, como nos conta a própria nesta entrevista realizada por e-mail.

 

Juntar a sua história pessoal às suas impressões que foi anotando ao longo dos cinco anos em trabalhou na Casa Branca foi uma decisão ousada. Alguma vez se arrependeu?

Não consigo imaginar ter escrito a história de uma maneira diferente. Claro que isso me deixou mais vulnerável a críticas, mas não me arrependo. As pessoas na casa dos 20 anos nem sempre tomam as melhores decisões de vida – independentemente do sítio em que estejam empregadas – e eu queria transmitir esse aspeto humano de trabalhar na Casa Branca. O mais importante é aprender com essas experiências – e com base nas cartas que recebo, tenho orgulho de dizer que alguns leitores se sentiram menos sozinhos enquanto travam as suas próprias batalhas.

Ter sido tão sincera sobre a sua vida e sobre alguns aspetos como as traições foi uma catarse ou uma forma de vingança? Alguém deixou de lhe falar depois do livro?

Foi surpreendentemente útil refletir e ver como as coisas podem crescer como uma bola de neve, especialmente em ambientes tão caóticos. A intenção certamente não era de vingança, mas sim de cultivar um senso de conexão. Muitas vezes olhamos à nossa volta, ou olhamos para as redes sociais e pensamos que outras pessoas estão levando uma vida tão glamorosa quando, na realidade, todos estão lutando com alguma coisa – é a condição humana. E, no entanto, vivemos numa época em que tudo é encoberto, aumentado e filtrado para parecer melhor do que realmente é.
Eu queria escrever a verdade crua da minha experiência: corações despedaçados e ressacas horríveis incluídas.

Qual foi a situação mais embaraçosa que viveu nesses cinco anos? E a mais difícil?

Sou propensa a situações estranhas e momentos embaraçosos, por isso, para mim, foram cinco anos de humilhações. Há uma razão pela qual os críticos compararam os meus livros a Bridget Jones. As situações mais difíceis foram todas aquelas nas quais o Presidente (commander-in-chief) teve de agir como consolador-chefe (consoler in-chief), especialmente depois do tiroteio em massa. Cada vez que o Presidente se reuniu com as famílias das vítimas e com sobreviventes, eu estava lá e era impossível não me sentir destroçada e para lá de frustada porque o Congresso recusou-se a agir, não se importando com quantas pessoas, com quantos jovens, continuavam a morrer de violência sem sentido.

Recebeu algum feedback de Barack Obama ou de outro membro da sua administração depois de o livro ter sido publicado?

O meu comentário preferido veio de um jovem que trabalhou na Casa Branca no início do Governo Obama e saiu pouco depois de eu chegar, em 2012. Disse que se sentiu como se estivesse de volta ao avião e que tinha capturado com precisão como era viajar nessa bolha frenética, o que foi um dos meus principais objetivos para o livro. Queria que todos os meus amigos e futuros amigos tivessem um vislumbre daquele mundo naquela época. O Presidente Obama não me deu feedback, mas ele ainda está a trabalhar no seu próprio livro, por isso desculpo-o.

Todos os nomes que aparecem no livro são reais?

Disfarcei algumas identidades, talvez metade. O meu objetivo não era expor os indivíduos, mas falar sobre as provações e tribulações universais que todos nós enfrentamos na busca por amor. A maioria das pessoas encontrou um Jason e quase toda a gente que conheço lutou com um Rattler.

No início do livro, numa das primeiras viagens, conta como alguns colegas seniores partilharam consigo histórias incríveis e engraçadas que tinham presenciado, como George Bush a vomitar sobre o primeiro-ministro do Japão ou Reagan que adormeceu em frente ao Papa. Descreveu-se a si própria, nesse momento, como uma tábua rasa com pequenos olhos brilhantes absorvendo tudo. Vamos trocar de lugar, eu sou a recém-chegada: que histórias gostaria de contar, quais são os episódios que lhe vêm à cabeça?

Tenho que dizer que o Presidente Obama foi muito bom a manter a compostura, mesmo durante um período de 10 dias ao redor do mundo, quando incontáveis olhos e câmaras estavam colados a ele. Consegui treinar um estenógrafo antes de sair, e disse-lhe para segurar o microfone perto da boca do secretário de imprensa no avião, mas não muito perto, já que a primeira vez que gravei no avião atingi-o acidentalmente na boca com o microfone – um episódio que não gerou confiança.  

O seu livro é um bestseller e vai ser adaptado ao grande ecrã. Quem é a atriz que, na sua opinião, é a mais indicada para encarná-la?

Quero contratar alguém da Craigslist. Há muito potencial inexplorado por lá.

Trabalhar na Casa Branca mudou-a de que maneira?

Trabalhar na Casa Branca parece muito impressionante e dá a muitas pessoas um senso de elevada auto-estima, mas, como trabalhei para o Presidente Obama, sabia que era menos sobre o verniz e mais sobre o trabalho. O Presidente Obama e a sua administração não estavam na Casa Branca para dar palmadinhas nas costas, mas sim para melhorar a vida dos americanos e também dos cidadãos do mundo. Trabalhando para o 44.º Presidente, não posso deixar de avaliar as minhas ações, motivações e interações com um olhar mais crítico e hoje pergunto-me como posso ser melhor e contribuir para algo maior do que eu.

Porque desistiu do seu trabalho dois meses depois da tomada de posse de Donald Trump?

Achei o discurso e comportamento de Trump durante campanha de 2016 chocante. Depois da eleição, pensei: se ele pode ganhar, eu posso escrever (por outras palavras, TUDO pode acontecer). Foi a sua chegada à Casa Branca que me motivou a parar de enviar vinhetas para a minha mãe e começar a aprender como publicar um livro. O discurso inaugural de Trump em janeiro mostrou ainda mais a sua natureza divisiva e egoísta, mas eu estava interessada em vê-lo de perto e… precisava de pagar a renda. Depois de dois dias, tinha visto mais do que o meu estômago podia aguentar, mas fiquei por mais dois meses. Estava a desgravar uma comunicação para a imprensa de Sean Spicer quando o meu agente literário me ligou a dizer que a Penguin Random House queria assinar um contrato de dois anos. E larguei o microfone.

Ainda fala com os seus antigos colegas, sabe como está o ambiente dentro da Casa Branca por estes dias?

Quase todos os meus amigos tinham sido politicamente nomeados, por isso saíram com o Presidente Obama. Dito isto, é um incêndio ‘Trumpster’ lá dentro, posso garanti-lo.

Vi numa fotografia sua que, finalmente, tem um cão, um desejo de que tanto fala no livro. Que outros sonhos é que já alcançou entretanto?

Oh, quem me dera. Os meus pais têm um cão e levo o da minha vizinha de 90 anos ao parque algumas vezes por semana, já que ela não pode levá-lo sozinha. Ainda quero muito um cão e esse é um dos meus objetivos para 2019. O livro foi o grande sonho e a grande conquista do ano passado, mas estou animada por escrever um segundo livro e lutar com os desafios que estão por vir. E também estou animada para escrever sobre a vida amorosa de outras pessoas ao invés da minha! Estou a trabalhar nisso neste momento, até porque sempre sonhei escrever ficção, e por isso estou a pôr as mãos na massa.