‘Temos que sonhar, senão as coisas não acontecem’

Leia e recorde a entrevista que Oscar Niemeyer concedeu ao SOL, dias antes de celebrar o seu 100.º aniversário, em 2007. Texto originalmente publicado na revista Tabu, a 22 de Dezembro desse ano.

o que é mais importante na vida para si?

há tanta coisa a destacar… um gesto de solidariedade, uma prova autêntica de amizade, a coragem dos que lutam por um mundo mais fraterno e solidário, o carinho da mulher preferida.

e quais são os sonhos de niemeyer?

os sonhos comuns a todos os que aspiram a uma vida mais justa e digna. ainda sonho com isso: justiça e dignidade. a gente tem que sonhar, senão as coisas não acontecem!

diz-se que criou uma linguagem própria nos projectos. que linguagem é essa?

cada artista cria e recria a sua linguagem. tem que haver fantasia! o que prevalece na minha obra é a busca de uma arquitectura mais leve e solta, onde a surpresa e o espanto se fazem sempre presentes. tem que haver uma solução diferente. isso é que é importante na arquitectura. o que vai ficar da arquitectura, o que ficou, não foram as pequenas casas, muito bem tratadas… foram as catedrais; foram os grandes balanços. e a beleza é muito importante!

chamam-no de vanguardista. as suas ideias são visionárias.

visionárias? sou um bicho da terra pequeno, talvez insignificante demais diante da grandeza deste universo fantástico.

soprou já cem velas. que momentos mais o marcaram?

os que passei junto dos meus amigos mais queridos e dos meus familiares. e também os momentos em que participei mais intensamente na luta política.

de onde vem a sua energia?

talvez do prazer com que me entrego à criação dos meus projectos, o amor pelo trabalho, hoje apoiado e incentivado pela vera, minha mulher.

quando estava na europa, no exílio, escreveu um poema sobre as saudades do brasil. como vê o brasil actual?

com um pouco mais esperança… faz parte deste momento especial que a américa latina está a viver – os governos populares se afirmando, mantendo uma vigilância crítica indispensável contra o intervencionismo norte-americano, uma postura corajosa na defesa da soberania nacional.

e o que é ser brasileiro?

é saber amar este país, ter no peito o sentimento forte pela pátria.

traçou a história da arquitectura com uma postura intervencionista. de que forma sente ter contribuído para a política brasileira?

acredito ter exercido a minha cidadania de maneira activa e consciente. e isso é o que me basta.

o brasil tem, hoje, um governo de esquerda, mais próximo dos seus ideais políticos. acha que o país está melhor?

estamos com lula. é um presidente sensível às questões sociais do país. tem sabido conduzir a nossa política externa. mas há muito que fazer para superar um quadro, ainda dramático, de desigualdade social.

defende a luta do movimento dos trabalhadores rurais sem terra (mst) pela reforma agrária no brasil, uma acção que tem suscitado adesão e, em simultâneo, controvérsia. qual a importância do trabalho deste movimento?

trata-se do movimento social mais importante que surgiu no país nestes últimos vinte anos. admiro muito [joão pedro]stédile [economista e activista social brasileiro pelo mst] e a sua capacidade de liderança. o mst tem feito um trabalho muito importante na luta pelas terras apropriadas indevidamente.

‘só usa a arquitectura quem tem dinheiro. os outros estão fodidos nas favelas’, ouvimo-lo dizer no documentário sobre si: a vida é um sopro. que solução a arquitectura poderá dar aos grandes aglomerados populacionais?

nas cidades do futuro – esperamos! – as residências particulares serão mais simples. e os núcleos urbanos não estarão reféns dos automóveis, beneficiando de um novo sistema de circulação. a sua densidade demográfica terá de ser mais controlada e a vida será mais harmoniosa.

qual o maior desafio da arquitectura contemporânea para si?

ela responde aos grandes problemas do presente. e o que realmente importa são as soluções do dia-a-dia. e os arquitectos têm de conhecer os problemas da vida. devemos viver a vida de uma forma mais simples e esquecer as intrigas. o homem está condenado de alguma forma, não tem escolha.

com certeza ele tem muitas possibilidades para aproveitar a vida, mas nasce e morre, como qualquer outra criatura.

e que desafios tem, no momento, em cima do estirador?

felizmente ainda muitos e diversos. a praça de avilés, em espanha [que será inaugurada em 2010] com um grande museu e amplo auditório. tenho ainda o centro administrativo do governo do estado em minas gerais, o projecto de um teatro para recife [e foi recentemente sondado pelo governo angolano para a construção da nova capital do país].

como concilia a arquitectura no seu quotidiano?

continuo a trabalhar no meu escritório em copacabana, todos os dias. sou incapaz de me sentar numa cadeira sem fazer nada, ou simplesmente a lamentar-me pelas misérias da existência. a arquitectura sempre foi, ao mesmo tempo, um passatempo e uma profissão. atrai-me e absorve-me, mas não lhe dou muita importância. o mais importante para mim é sentir-me à vontade comigo. é importante mantermo-nos activos até ao fim. só vivemos uma vez!

em portugal o seu trabalho é muito admirado. sente que influenciou uma geração de arquitectos portugueses?

essa informação me chega sempre de meus amigos em portugal. é claro que fico contente. no entanto, é sempre bom frisar que cada arquitecto deve ter a sua arquitectura e seguir, de forma mais livre possível, a sua intuição.

o que lhe dá prazer?

o meu trabalho de arquitecto.

qual foi o projecto que mais gostou de idealizar?

foram inúmeros os que me entusiasmaram. poderia destacar, nesse sentido, aqueles que integram o conjunto de pampulha [em belo horizonte], o palácio do congresso em brasília, a sede do partido comunista francês, a universidade de constantine na argélia e, mais recentemente, o museu de arte contemporânea de niterói. e, também, a grande praça que desenhei para a cidade de avilés.

que obra lhe falta projectar?

o importante é criar! ver surgir, da folha branca de papel, um palácio, uma catedral, um prédio. se o projecto não é realizado, fica-nos, pelo menos, o momento de entusiasmo, as conversas surgidas, a esperança de que tudo se realize.

que leituras o marcaram?

os romances de dostoiévski, em particular os irmãos karamazov, a reunião da obra lírica de camões, a condição humana de andré malraux, os romances principais de albert camus e do meu escritor português preferido, eça de queirós. como me agrada ler os maias ou a ilustre casa de ramires! são uma experiência de leitura sempre renovada.

como mudaria o mundo?

ele é muito pequeno. falo assim não por falsa modéstia, mas sim pela crença de que o ser humano é um sujeito sem perspectiva, de uma fragilidade surpreendente. ter consciência disso talvez seja um bom ponto de partida para repensarmos a importância de sermos mais modestos e solidários e podermos – de mãos dadas – construir um mundo mais fraternal.

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