Mary Oliver. A mulher que se salvou pela poesia

‘Tive uma família muito disfuncional, e uma infância muito difícil’, disse Oliver. ‘Por isso, criei um mundo a partir de palavras, e isso foi a minha salvação’.

O recreio de todos, as coisas mais simples e à vista de qualquer um, são a matéria dos poemas de Mary Oliver. Eram seus os velhos temas, que para muitos inveterados leitores de poesia parecem gastos, e, no entanto, natureza e beleza ou deus não se deixavam ler nos versos desta tão popular autora norte-americana senão com maiúsculas. Oliver morreu na quinta-feira, aos 83 anos, de um linfoma que lhe fora diagnosticado em 2015.

Referida muitas vezes como a mais amada entre os poetas da América, Oliver teve vários dos seus livros nas listas de best-sellers, mas a crítica nunca lhe prestou muita atenção e, das poucas vezes que isso aconteceu, a sua poesia foi abordada de forma um tanto condescendente ou até com um certo desdém. Em 2011, David Orr, o colunista de poesia do The New York Times Book Review, referiu-se-lhe dizendo que a «única coisa que da sua poesia se pode dizer é que nenhum animal parece ter sido magoado enquanto esta foi escrita». Ainda assim, a sua obra foi distinguida com o Prémio Pulitzer, em 1984, pelo livro American Primitive, e o Prémio Nacional do Livro, em 1992, pela coletânea New and Selected Poems.

Nascida em Cleveland, no Ohio, em 1935, estreou-se aos 28 anos, com a recolha No Voyage and Other Poems. Viria a escrever duas dezenas de livros de poesia ao longo da vida, e manteve colaboração com revistas prestigiadas como a The New Yorker. Embora se tenha tornado um fenómeno, era comparada a Emily Dickinson pela sua atitude reservada, e se fez várias leituras públicas, raramente concedia entrevistas, assumindo que preferia que fossem os poemas a falar por si mesmos. As poucas observações que foi fazendo, como notas à margem dos poemas, eram igualmente bem medidas, e, como eles, tinham um efeito quase calmante.

Numa das poucas entrevistas que concedeu, em 2011, a Maria Shiver, num número da O – a revista de Oprah Winfrey -, Oliver confessou que fora vítima de abusos sexuais na infância, e que a poesia a ajudou a libertar-se desse trauma. «Tive uma família muito disfuncional, e uma infância muito difícil», disse a Shriver. «Por isso, criei um mundo a partir de palavras, e isso foi a minha salvação».

Começou a escrever poesia aos 13 anos, e porque tentava passar tanto tempo quanto possível longe de casa, afastada do pai que abusava dela e da mãe que a negligenciava, perdia-se pelos bosques de Maple Heights, levando Whitman ou Thoreau na mochila, e foi criando o seu vínculo com a natureza, dando com os ecos de irmãos perdidos pelos séculos, e a isso atribuiu a sua vocação contemplativa, ficando claro pelos textos que dedicou ao assunto que se lhe entregava com uma devoção quase religiosa.

Mistérios, sim é o título de um dos poucos poemas de Oliver traduzidos para português, no caso, por Vasco Gato: «É verdade que vivemos entre mistérios demasiado maravilhosos/ para serem compreendidos.// Como a erva pode ser alimento nas/ bocas dos carneiros./ Como os rios e as pedras juram/ lealdade eterna à gravidade/ ao passo que o nosso sonho é erguermo-nos./ Como duas mãos se tocam e esses vínculos/ jamais serão quebrados./ Como as pessoas chegam, do deleite ou das/ cicatrizes da mágoa,/ ao consolo de um poema.// Que eu me mantenha longe, sempre, daqueles/ que julgam possuir as respostas.// Que eu viva sempre na companhia daqueles que dizem/ ‘olha ali!’ e riem de espanto,/ e inclinam as cabeças».

Nos seus poemas, e mesmo quando se torna inescapável a sensação de estarmos diante da obra de alguém que busca consolação, que se faz valer da  natureza para elevar uma passagem harmoniosa sobre a devastação afetiva, e o caos na relação entre as pessoas, e se não raras vezes fica perto de um tom delicodoce, ou mesmo piegas, noutros momentos esta poesia alcança o vigor pulsante que se encontra em outros grandes poetas místicos, e, por isso mesmo, Oliver chega a ser uma irmã mais nova dos autores que deram uma voz à América, e de poetas ingleses como William Blake e Gerard Manley Hopkins.

Ainda adolescente, saiu de casa, passou uns tempos a estudar na Ohio State University e no Vassar College, sem concluir qualquer curso, e, certo dia, decidiu-se a conduzir até Steepletop, a antiga casa de Edna St. Vincent Millay, em Austerlitz, no estado de Nova Iorque, e ali viveu por uns anos, ajudando Norma, a irmã da poeta, na organização dos papéis.

Foi anos mais tarde, no final da década de 50, numa visita de regresso a Steepletop, que Oliver conheceu Molly Malone Cook, uma fotógrafa e galerista, ex-assistente do escritor Norman Mailer, e que se tornou a sua companheira de vida e agente literária. Cook viria a morrer em agosto de 2005. Alguns meses antes, ao publicar Long Life Essays And Other Writings, Oliver escolheu homenageá-la com uma fotografia em que as duas estão juntas, lado a lado.