Dos fortes é que reza a História!

Homem de profundas convicções religiosas, o Sr. Vital nunca abandonou a Fé, entregando-se nas mãos de Deus até chegar a sua hora

Todos conhecemos uma expressão utilizada a propósito das mais variadas situações na vida de tanta gente: «Dos fracos não reza a História».

Esta expressão faz-nos pensar logo nos ‘pequeninos’, nos derrotados, naqueles que não conseguiram vencer ‘batalhas’ na sua vida, ou nunca atingiram os objetivos pretendidos.

A esses a História não perdoa e condena-os à sua insignificância, não falando sequer deles. Pelo contrário, enaltece os outros, os ‘heróis’, os que saíram vitoriosos e se destacaram pelas coisas boas que fizeram, pelo testemunho que deixaram e pelo exemplo que vai ficando ao longo da vida, de geração em geração. São os ‘fortes’, os ‘grandes’, aqueles de quem se continuará a falar, mesmo depois do seu desaparecimento.

O caso que hoje partilho enquadra-se neste grupo. Um doente, uma família e os cuidados médicos que lhe foram prestados.

Em setembro passado, a pedido do filho (e meu amigo) José Carlos, foi solicitada a minha colaboração para observar o seu pai de 79 anos, doente há algum tempo. Suspeitando de doença grave, dado o seu emagrecimento e demais sintomatologia, solicitei os exames necessários que vieram confirmar as minhas suspeitas iniciais. Em ‘desespero de causa’, ainda pedi o parecer ao meu irmão Jorge, o expert do setor hepato-bilio-pancreático (e referência na cirurgia pancreática), que, após observação e análise do processo no Hospital Curry Cabral, não podia ter sido mais claro: «Luís: a situação é muito grave. Já não é operável. A doença está espalhada». Aqui começa a batalha.

O Sr. Vital, através do seu centro de saúde (Sacavém), teve e assistência médica de que precisava, não só pelo louvável acompanhamento da médica de família mas também com o apoio do Hospital de Santa Maria, que fez (e bem) o seu trabalho. E, por aquilo que fui verificando, os cuidados paliativos funcionaram em pleno. Um exemplo a seguir.

Estamos fora de Lisboa (S. João da Talha, área da residência), cada caso é um caso, mas por que não copiar os bons exemplos e ‘trazê-los’ para onde há maior dificuldade? E, já agora, por que não enaltecer esta área tão importante dos cuidados paliativos e referir os aspetos positivos e o que se tem conseguido fazer, em vez de continuar a acusá-la de quase não existir? São estes casos de que nos devemos lembrar – e que devem servir de estímulo para se fazer mais e, se possível, melhor!

Outro aspeto prende-se com a família. Uma família unida, sabendo da gravidade do problema e acatando as decisões médicas. Um ponto importante a ter em conta, numa altura em que prolifera a desunião nas famílias e a desconfiança nos médicos.

Presentemente, já ninguém se conforma com mortes de causa natural. É preciso arranjar culpados à força, se necessário até recorrendo aos tribunais, onde a alegada negligência médica está em alta. Daí os médicos pedirem, para sua própria, defesa, exames por tudo e por nada, talvez mesmo sem necessidade, tanto nos hospitais como em ambulatório – com o Estado (o eterno sacrificado) a pagar os custos dessa defesa! Famílias como esta já são raras e distinguem-se por fazerem a diferença.

Finalmente, o doente. Consciente da sua situação e enfrentando a doença com impressionante coragem, sem falar uma única vez na palavra ‘morte’, foi resistindo e aceitando sem revolta o que lhe estava destinado, confiando nos médicos e não culpando ninguém pelo seu estado clínico, num comportamento de exceção à (quase) regra geral. Assim deixou o seu testemunho de vida.

Homem de profundas convicções religiosas, nunca abandonou a Fé, entregando-se nas mãos de Deus até chegar a sua hora. Deixou-nos próximo do Natal, mas partiu rodeado do carinho da família e dos excelentes profissionais que o trataram, como qualquer ser humano merece e tem direito.

Quebrei o nosso ‘código de conduta’, pois fiz questão de estar presente na despedida. Era a minha solidariedade para com os ‘obreiros’ desta missão. Foi comovente a cerimónia. Uma celebração presidida pelo padre que o Sr. Vital, tenho a certeza, mais gostaria de ter ali naquele momento: o seu filho José Carlos. Citando a Madre Celina: «A certeza da Fé não anula a natureza sensível».

Se é verdade que ‘dos fracos não reza a História’, aqui fica o meu cumprimento e a minha homenagem a todos aqueles que a História sempre lembrará.

(À memória do Sr. Vital de Sousa Nunes)