Portugal está a falhar na mortalidade infantil?

Mais 60 mortes em 2018 lançaram o alerta. Dados do INE revelam que em dez anos dispararam os óbitos de bebés afetados por doenças da mãe e complicações da gravidez e do parto. DGS cria grupo de trabalho.

Portugal está a falhar na mortalidade infantil?

Nos anos 70, por cada mil crianças que nasciam em Portugal, mais de 50 morriam antes de completar o primeiro ano de vida. Portugal tinha um dos cenários mais negros a nível europeu e viria a conseguir uma redução sem paralelo na UE. Em 40 anos, a taxa de mortalidade baixou mais de 90%, com o país a conseguir chegar ao século XXI sem destoar muito dos vizinhos europeus. Cada vez que há um recuo, soam os alarmes. Aconteceu em 2011 e 2012, no pico da crise, e tornou a acontecer em 2018, com o país a crescer e sem mudanças aparentes. Terá sido um ano atípico ou haverá algo mais a escapar aos programas de saúde?

Para já há um balanço provisório feito esta semana pela Direção-Geral da Saúde. A taxa de mortalidade infantil fixou-se nas 3,28 mortes por cada mil nascimentos, o valor mais elevado desde 2012. Em relação a 2017, houve mais 60 mortes. 
A Ordem dos Médicos pediu um apuramento rápido das causas, considerando a subida preocupante. O pedido foi acompanhado pelo Presidente da República. Marcelo falou já depois de a diretora-geral de Saúde ter considerado que os valores estavam dentro da normalidade e que o número de mortes não ficou muito distante do que se verificou em 2016, o que deixa a hipótese de o ano atípico ter sido 2017. «Se for verdade aquilo que foi noticiado e, se for verdade que uma das conquistas de Abril conhece uma evolução negativa, então o que é preciso é apurar porque é que isso aconteceu, para que não continue a acontecer», reiterou Marcelo.

O tema está longe de estar esclarecido e esta sexta-feira a DGS anunciou que será criado um grupo de trabalho para estudar o fenómeno, chamando peritos externos. O ponto de partida para analisar 2018 está na informação disponível nos certificados de óbito. Sabe-se que, das 289 crianças que morreram com menos de um ano de idade, 194 tinham menos de 28 dias de vida. Destas, metade eram recém-nascidos que tinham nascido com grande prematuridade, antes das 28 semanas de gestação, o que aumenta o risco. 

A idade das mães e doenças como diabetes ou hipertensão contribuem para o risco de prematuridade e nascimentos com baixo peso, salientou ao jornal i Graça Freitas, vendo aqui um desafio para os próximos anos. «Hoje temos cada vez mais tecnologia que permite a sobrevivência destas crianças, que poderá compensar a tendência de termos mães mais velhas, mas é uma realidade que temos de acompanhar», admitiu. 

Portugal a meio da tabela: a idade das mães explica tudo?

Os dados sugerem que será necessário ir mais fundo na análise. Apesar da evolução positiva nas últimas décadas, em 2016 havia 12 países europeus com uma taxa de mortalidade infantil abaixo da registada em Portugal. A Finlândia tem o melhor resultado: uma taxa de de 1, 9 mortes por cada mil nascimentos. Nesse ano,  a idade média das mães em Portugal foi de 31,1 anos. Na Finlândia não era muito menor: 30,3 anos. Mas entre os países que conseguem melhores resultados há até casos em que a idade das mães é superior. Por exemplo em Chipre, em quinto lugar, as mulheres que deram à luz em 2016 tinham em média 31,4 anos. «Sabemos em que ponto estávamos em 2016, mas precisamos de perceber como evoluiu a realidade nos restantes países europeus para podermos tirar conclusões», disse ao i Graça Freitas. «Partimos de uma realidade pior que a de outros países.» 

Miguel Oliveira da Silva, obstetra no Hospital de Santa Maria e ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, acredita que o adiamento da maternidade no geral pesa, mas não será o único fator e por isso está entre os especialistas que defendem uma investigação rigorosa de todas as mortes, desde o tipo de seguimento na gravidez até ao óbito da criança. «O atraso na idade da maternidade é vulgar em toda a Europa. Não é mais aqui do que no norte da Europa. Dizer que houve uma grande evolução não é suficiente e enquanto não fizermos um estudo detalhado não poderemos responder», sublinha o médico ao SOL. 

Se a idade materna, as condições socioeconómicas e as doenças das mães são fatores que têm sido discutidos, Oliveira da Silva alerta para realidades sobre as quais se sabe pouco, por exemplo se imigrantes têm mais bebés pré-termo e se têm acesso a cuidados pré-natais adequados. Mas está preocupado sobretudo com a realidade da Procriação Medicamente Assistida, os tratamentos de fertilidade que, segundo os últimos dados disponíveis contribuem já para três em cada 100 nascimentos no país. «É preciso ver que idade tinham estas mulheres, se foram gravidezes de um só feto ou gemelares e se foram gemelares espontâneas ou de Procriação Medicamente Assistida (PMA), que é uma suspeição que eu tenho. E se foram mulheres que recorreram a PMA, que idade tinham?», questiona o médico. 

Não sabemos nada sobre a idade das mulheres que recorreram à PMA em Portugal desde 2015, é gravíssimo", diz Miguel Oliveira da Silva, obstetra e antigo presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida

Um dos receios prende-se com o facto de, no Estado, haver um limite de 40 anos para os tratamentos e no privado não. «Se o Estado não aceita mulheres depois dos 40 anos é porque acha que há uma série de contraindicações médicas para isso. Essas contraindicações não existem à tarde no privado, muitas vezes com o mesmo médico?», continua Oliveira da Silva. «Nos países do Norte da Europa, a PMA no setor privado é praticamente inexistente, o que pode querer dizer que não há tanta obstinação financeira em serem praticadas gravidezes com situações inadequadas», diz, lamentando que o último relatório do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), que permite perceber o que se passa nesta área, seja de 2015. «A lei mudou em 2016 e permitiu o acesso a mulheres sozinhas e lésbicas à PMA. Não sabemos nada sobre a idade das mulheres que recorreram à PMA em Portugal desde 2015, é gravíssimo. Não estou a dizer que foram nesses casos que houve aumento de mortalidade, mas em alguns pode ser», conclui o médico, concordando com a ideia da diretora-geral da saúde de que, sendo preciso justificar a variação, é necessário avaliar uma série temporal para perceber se há alterações na saúde materno-infantil do país.

A tendência por estudar

Dados do INE revelam desde já uma tendência. Estão apenas tratados os óbitos até 2017, mas verifica-se que na última década têm estado a aumentar sobretudo as mortes de bebés «afetados por fatores maternos e complicações da gravidez, do trabalho de parto e do parto». Em 2017, ano em que a taxa de mortalidade infantil baixou, registaram-se 45 óbitos devido a complicações desta natureza. Em 2010, quando em Portugal nasciam mais 15 mil crianças por ano do que atualmente, foram apenas 11. No mesmo período, houve uma diminuição de outras causas de morte, por exemplo problemas do foro respiratório. Se todas tivessem o mesmo desenrolar, a taxa de mortalidade teria baixado ainda mais. 
Para Oliveira da Silva, a investigação detalhada das mortes deveria acontecer todos os anos, para que se detetasse mais cedo tendências. «Quando os dados estão a descer ou estão estáveis, ninguém se preocupa», lamenta. A mesma visão tem o bastonário dos Médicos. «Precisamos de uma acompanhamento mais regular de todos os indicadores de saúde», disse ao SOL.

Perante os dados do INE, que não conhecia, Miguel Guimarães acredita que são um sinal do trabalho que está por fazer. «Fatores maternos podem incluir casos de pré-eclâmpsia, cujo o risco aumenta com a idade das mães e precisa de vigilância. O mesmo com problemas no parto. O que vemos é uma tendência consistente que surge a par da diminuição de outras causas de morte, que pode significar que hoje há mais apoio da neonatologia em situações de insuficiência respiratória. É necessário perceber o que significam estes dados para intervir.»