Venezuela. Guerra fria tropical

EUA e aliados de um lado, Rússia, China e Irão do outro – a crise política na Venezuela põe as potências em confronto. 

ARússia gastou milhares de milhões de dólares e muito esforço político para conseguir um aliado de peso na América do Sul e a possibilidade do Governo de Nicolás Maduro vir a cair, substituído por Juan Guaidó – o presidente da Assembleia Nacional que esta semana se autoproclamou Presidente interino do país, e foi logo reconhecido pelos Estados Unidos – ameaça pôr em causa todo esse esforço. 

«Consideramos que a tentativa de usurpar a autoridade soberana na Venezuela contradiz e viola as bases e os princípios do direito internacional», afirmou o porta-voz da Presidência russa, Dimitry Peskov. «Maduro é o legítimo chefe de Estado», acrescentou. Moscovo deixou o aviso a Washington de que qualquer interferência militar na Venezuela será considerada pela Rússia como «um aventureirismo cheio de consequências catastróficas».

Os EUA não só reconheceram Guaidó, como menorizaram o corte de relações diplomáticas declarado por Nicolás Maduro e o seu aviso de 72 horas (que hoje termina) para todos os funcionários diplomáticos norte-americanos abandonarem o país. E o secretário de Estado Mike Pompeo ameaçou com intervenção militar caso o Governo de Maduro pretenda impor à força essa medida. «Os EUA tomarão as medidas necessárias para responsabilizar quem puser em perigo a segurança e a proteção da nossa missão e dos seus funcionários», afirmou o chefe da diplomacia norte-americana.

A retórica russa manteve-se num tom inflamado durante toda a semana, com o primeiro-ministro a apelidar o que se passa na Venezuela de «quase-golpe» e o presidente Vladmir Putin a chamar-lhe «uma interferência externa destrutiva».
Além de um aliado político no continente americano, a Rússia pode ver esfumar-se um investimento na economia venezuelana de cerca de 25 mil milhões de dólares, de acordo com os cálculos de Dimitry Rozental, do Instituto da América Latina da Academia Russa de Ciências, citado pelo correspondente em Moscovo do Washington Post. A que se soma um cliente com vontade de gastar milhares de milhões de dólares em armamento russo.

A China pode ter mais dinheiro a perder – é o maior investidor na Venezuela, tendo concedido créditos ao Governo de Maduro equivalentes a mais de 50 mil milhões de euros. Além de sofrer um revés na sua busca de influência, num continente onde pesa ainda pouco. Mas se a a reação russa foi praticamente o equivalente político-diplomático ao espumar de raiva, Pequim optou por um apelo à moderação e ao «diálogo pacífico», sublinhando o seu princípio de não interferência nos assuntos internos de outros Estados.

O que se viu, no entanto, foram posições perfeitamente antagónicas. De um lado EUA, a maioria dos países latino-americanos, países europeus como o Reino Unido, que reconheceram a legitimidade de Guaidó. Do outro, um grupo liderado por Rússia, composto por China, Turquia, Irão e uns quantos países latino-americanos. Numa clivagem do mundo que repete, num palco completamente diferente, a aliança que está prestes a vencer o conflito na Síria.

Serão sinais do irromper de uma nova guerra fria, num mundo onde o antagonismo e o confronto se tornou mais forte que a construção de pontes? Onde o multilateralismo e o peso das Nações Unidas na resolução de conflitos está no nível mais baixo em décadas?

O diálogo, que pediu a China e que pediram alguns países da União Europeia, como Portugal, parece já desenquadrado dos últimos acontecimentos, com a multiplicação do reconhecimento internacional de Guaidó como presidente interino e com vários países da UE a chegarem à conclusão de que o tempo de Maduro «acabou», como disse esta semana o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva.

Uma questão de legitimidade

Sinal de que o tempo é mais de queimar pontes, o presidente do Parlamento Europeu reconheceu a «legitimidade democrática» de Guaidó na quarta-feira à noite. Declaração pessoal que outros 29 deputados europeus querem ver Bruxelas subscrever. Dita Charanzová, eurodeputada checa, escreveu uma carta, assinada por outros 29 companheiros do parlamento, a apelar a «uma posição unida, forte e rápida da UE», que «reconheça Juan Guaidó como o único Presidente legítimo da Venezuela».

O jovem engenheiro de 35 anos, delfim de Leopoldo López, líder da oposição que está em prisão domiciliária, ainda é um rosto relativamente pouco conhecido, tendo assumido a presidência rotativa da Assembleia Nacional apenas no dia 5 de janeiro. A sua autoproclamação chega numa altura em que os protestos contra o Governo de Maduro – fortes e violentos em 2017 – estavam em banho maria, com pouca capacidade mobilizadora. No entanto, a conjuntura internacional mudou no continente americano. O empenho do Governo dos EUA no derrube do bolivarianismo ganhou mais aliados nos últimos meses, com Jair Bolsonaro, no Brasil, Iván Duque, na Colômbia, e Sebastián Piñera, no Chile.

A rapidez com que os acontecimentos fizeram pender a balança para o lado do autoproclamado presidente interino da Venezuela parecem ter feito ver a Moscovo que o futuro de Maduro parece estar mesmo em causa. Crise económica, hiperinflação, desabastecimento de alimentos e medicamentos, fuga de mais de três milhões de pessoas; o cenário é propício à mudança, daí que a Rússia se tenha oferecido, esta sexta-feira, para mediar negociações pacíficas entre Maduro e Guaidó. Alexander Shchetinin, responsável pela América Latina no Ministério dos Negócios Estrangeiros russos, afirmou à agência RIA que estão dispostos a cooperar com as forças globais numa ação responsável.