Há dez dias, numa entrevista (aliás, excelente) a Vítor Gonçalves, Morais Sarmento criticou Marcelo Rebelo de Sousa por ter recebido em Belém Luís Montenegro, então candidato à liderança do PSD.
Mas antes dessa crítica, Sarmento fizera um elogio a Marcelo.
Dissera que o país tem uma dívida para com ele.
Qual?
Ter unido os portugueses.
Os portugueses estavam divididos, deprimidos, depois do período da troika, e Marcelo restituiu-lhes o ânimo e fez a reconciliação nacional.
Como disse Sarmento, o Presidente deu «um abraço ao país» e uni-o à sua volta.
Morais Sarmento comparou Marcelo Rebelo de Sousa a Cavaco Silva.
Cavaco, como primeiro-ministro, recuperou as Finanças e desenvolveu Portugal; Marcelo, como Presidente, devolveu aos portugueses a confiança, depois de um período negro.
Concordo com a ideia de que Cavaco Silva foi um homem providencial.
Em 1985 o país estava mergulhado num atoleiro, os portugueses começavam a descrer da democracia, a instabilidade política era enorme, os fantasmas da 1.ª República regressavam; ora, Cavaco pôs as Finanças em ordem e iniciou um ciclo de desenvolvimento e obras públicas a fazer lembrar (embora a alguma distância, reconheça-se) os tempos de Duarte Pacheco ou do fontismo.
De certa maneira, Cavaco foi para o 25 de Abril o que Salazar fora para o 28 de Maio: viabilizou o país depois de uma revolta militar que abalou as instituições e criou o caos nas finanças.
O caso de Marcelo Rebelo de Sousa é diferente – pois ainda não fez nada nem fará, visto que o Presidente não tem funções executivas.
Marcelo criou um ambiente.
Um ambiente positivo, mais otimista, mais descontraído.
E isso, para a esmagadora maioria, foi bom, foi ótimo.
Mas eu permito-me ter algumas dúvidas.
Quando Marcelo foi eleito, o ambiente era de receio, é verdade.
Mas esse receio tinha uma virtude: as pessoas não gastavam, consumiam pouco, poupavam e não pediam dinheiro emprestado.
Tinham cautela.
Ora, a chegada do Marcelo Rebelo de Sousa a Belém, descomprimindo o ambiente com a sua personalidade esfuziante, quebrou o medo – o que, associado às constantes declarações do primeiro-ministro dizendo que «a austeridade acabou», fez o resto.
As pessoas acharam que podiam voltar a gastar, deixaram de poupar e recomeçaram a endividar-se.
As importações subiram em flecha e a balança comercial voltou a desequilibrar-se e a registar valores negativos.
A liquidez dos bancos diminuiu e houve que voltar a pedir dinheiro ao estrangeiro.
Ou seja, voltámos a uma situação parecida com a que existia antes da troika.
Dir-se-á que o novo ambiente também possibilitou que a economia voltasse a crescer, o desemprego a diminuir, o défice a cair.
Tudo isso é verdade, com um senão: essa tendência já se verificava quando a ‘geringonça’ tomou posse e Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito.
Nessa altura, o país já estava no ‘bom caminho’, com a economia a crescer 1,5%, o desemprego a cair e o défice também.
Passos Coelho já fizera o mais difícil, reduzindo brutalmente o défice público e invertendo a tendência negativa da economia, passando da recessão ao crescimento.
O novo ambiente criado por Marcelo e Costa confirmou e acelerou esse processo, mas não o criou.
Entretanto, como vimos, o clima de otimismo que hoje se vive tem um lado perverso.
Em 2010, quando Portugal caminhava para o abismo, todos percebíamos que só um choque psicológico o poderia fazer arrepiar caminho e evitar a catástrofe.
O país estava drogado e só podia parar com um susto.
Esse ‘susto’ foi a vinda da troika e a política imposta pelo Governo de direita, com cortes nos salários e pensões.
Só isso permitiu travar a trajetória suicida.
Ora, era bom que esse clima então criado perdurasse, que não se perdesse por completo, que os portugueses não esquecessem rapidamente o que se passou – para não voltarmos ao mesmo.
Mas o tal ‘abraço’ de Marcelo contribuiu para o esquecimento.
Eu até diria: promoveu o esquecimento.
Os portugueses descomprimiram. ‘Descrisparam-se’.
Ficaram de repente todos mais confiantes.
Voltaram a divertir-se, a gastar, a endividar-se.
Ora isso é bom?
Para alguns será.
Para o país não é.
Mas só daqui a algum tempo poderemos ver as consequências da descompressão.
A História nunca se escreve no presente.
P.S. – Repito uma pergunta: que fiz na edição anterior: quando uma pessoa vende uma casa por um preço muito abaixo do valor de mercado, e compra outra por um preço muito acima do valor de mercado, evitando com isso o pagamento de mais-valias, o que deveremos pensar? Ora isto passou-se com o primeiro-ministro. Não merece uma explicação?