“Aqui não há lados, há pessoas”

O fim do Bairro da Jamaica começou em dezembro, quando foram realojadas 63 famílias. Agora, as que ainda lá vivem, esperam que a sua vez chegue rápido e que possam deixar a vergonha e o frio para trás

O futuro não existe num bairro como a Jamaica, apesar daquela creche à entrada. Muitos já saíram de lá – daquele prédio onde agora apenas está um segurança a garantir que já não voltam – mas os problemas continuam. Nos prédios ao lado, verdadeiros amontoados de tijolos, nas barracas, nos cafés, no asfalto que nos últimos dias correu o país pelas piores razões.

 As visitas guiadas a jornalistas para defender a honra dos moradores foram muitas nos últimos dias e começavam sempre ali, ao pé dos baloiços cheios de crianças, mas que à noite balançam sozinhos. «Este é o nosso bairro, é aqui que vivemos e aqui não há gente de mal, não vale a pena ninguém ter medo de entrar sozinho», diz um dos familiares de Hortênsio Coxi – detido pela PSP na passada segunda-feira – que acompanha o SOL desde a entrada do Bairro da Jamaica até ao centro.  

Correr o bairro de uma ponta a outra não demora mais de cinco minutos, o suficiente para perceber o porquê de ser considerado uma espécie de gueto pela PSP e o porquê das queixas de quem lá mora – portugueses e nacionais de vários países africanos, muitos com uma vida ‘normal’. A violência também não mora lá sempre.

«A polícia não costuma vir aqui, às vezes passam só carros de trânsito, mas tudo tranquilo e em relação a desacatos, nunca», explica Salimo Mendes, um dos moradores do bairro. Ele, tal como muitos outros ali, afiança que os agentes da PSP não foram provocados. Vanusa Coxi, que assistiu aos desentendimentos, chega mesmo a dizer que na segunda feira os agentes «pararam, olharam e ainda se riram». 

No entanto, do lado da PSP, os agentes afirmam que os moradores «arremessaram pedras em direção do efetivo policial».

Entre cumprimentos a quem passa – no bairro todos falam uns com uns outros, mesmo com quem não conhecem – Salimo Mendes posiciona-se no sítio exato onde a confusão começou. Fala alto e eleva a voz num tom de revolta. De revolta, diz, por aquilo que sente e por aquilo que quem não é dali sente – medo e preconceito. Mas como nada do que ali se passa pode ser entendido sem olhar para trás, aproveita para falar do passado e conta como era o bairro.

«Antigamente, tinha uns bares ali, mas agora é a minha horta, planto piripiri, pimentão, quiabos, alfaces, beringelas, mas só depois de abril, porque agora o frio queima tudo», conta Salimo que garante que o presente é bem diferente e que agora a polícia não tem razões para ir ao Bairro da Jamaica. 

E se por ali ninguém se apercebeu de ataques à polícia, uns metros ao lado também não. Ainda antes de entrar no bairro, onde estão os cabeleireiros, os cafés e lojas de pequeno comércio, quase todos garantem ao SOL que nunca tiveram problemas com os moradores. E há também uma opinião consensual: quando há desacatos entre as pessoas do bairro, os responsáveis são sobretudo os mais jovens. Uma posição justificada por uma vizinha que dorme todos os dias ao som de música africana dos cafés do bairro, já que a sua casa fica mesmo atrás do bairro. «É a miudagem, saem do bairro às tantas e destroem o que apanham à frente, principalmente os carros», garante, pedindo anonimato. 

Voltando ao bairro é fácil perceber que quem fica lá dentro durante o dia são mesmo os jovens. Nos bares, na pequena mercearia que existe para os moradores do Bairro da Jamaica, ou mesmo junto ao pequeno cabeleireiro do bairro, que tem um letreiro improvisado com a inscrição «penteados africanos», os jovens distribuem-se e assim passam os dias. Porquê? Joelma Mendes, mulher de Salimo Mendes, conta que quando chegou ao bairro, em 2009, não conseguia encontrar trabalho: «Basta dizer que moro no vale de Chícharos e dizem ‘ah, está bem, vai para casa e depois ligamos’, mas nunca ligam». 

«Quando se vive no bairro já existe o estigma, basta saber que a pessoa vem do bairro e pensam logo que a pessoa é ladra e que não serve para trabalhar», diz Vanusa Coxi. No entanto, é preciso ver também o outro lado e os moradores têm essa consciência. Vanusa avisa que «que há muitos que não se pode dizer que são desempregados por falta de trabalho». 

Famílias à espera de futuro

É fácil desenhar a planta do Bairro da Jamaica. Basta ir uma vez para perceber a dinâmica do funcionamento e as divisões que se criam. De fora parece desorganizado, mas estando lá dentro tudo é claro. De costas para o agora vazio lote 10, vê-se um outro prédio de tijolo, de onde foi filmado o vídeo que colocou o Bairro da Jamaica novamente nas bocas do mundo. Mas é também aí que está o último café, o da senhora Dédé, como lhe chamam. Vive com o filho – que está sempre cá fora alerta e a ver tudo o que se passa – na cave do café. Ali há silêncio e a dona do estabelecimento está cansada de visitas. Vanusa Coxi ajuda o SOL a perceber as condições em que vivem as pessoas que estão nas caves e nos pisos junto ao chão. «As casas que são caves são as piores, há sempre água, a canalização é má e quando chove enche tudo com água e acaba por ser perigoso», por causa dos curtos circuitos, diz a jovem que faz também parte da associação de moradores. 

No Bairro da Jamaica é preciso olhar para todo o lado. No chão há eletrodomésticos velhos espalhados e alguns servem de banco para três jovens que estão a cozinhar o seu jantar. Em cima há inúmeras antenas que destoam do laranja dos tijolos – e se ficarem estragadas ninguém vai arranjá-las, porque os técnicos das operadoras não aceitam entrar no bairro. 

Naquele emaranhado, há um apartamento que destoa de todos os outros. Mesmo de fora, a casa de Salimo Mendes é diferente – fica no lote 15 e é a única que tem as paredes rebocadas e pintadas. «A casa tem paredes duplas, tem esferovite, tem tudo», diz o casal. E garante ainda que no inverno, o frio nem se sente lá dentro. «Nós não escolhemos viver aqui, mas também não tivemos outra oportunidade», diz Salimo, que vive ali com a mulher e os quatro filhos. 

O fim da vida do Bairro da Jamaica começou em dezembro quando as famílias do lote 10 foram realojadas em várias casas dispersas pela cidade do Seixal. No total, 64 famílias conheceram finalmente o que é poder receber alguém em casa sem medo ou vergonha. As restantes famílias esperam ansiosas. 

A fama do bairro é antiga e há uma questão que se coloca, sobretudo à Câmara Municipal do Seixal: porque é que o processo de realojamento foi tão demorado e só foi assinado o projeto em 2017? A esta pergunta, Manuela Calado, vereadora da Câmara Municipal do Seixal do pelouro da Educação, Desenvolvimento Social, Juventude e Gestão Urbanística explicou ao SOL que o projeto teve um percurso conturbado. Primeiro, porque a Câmara não encontrava parceiros para o projeto de realojamento e, em segundo, porque o Governo nunca se chegou à frente. Só em 2017, com a criação da Secretaria de Estado da Habitação é que foi possível, já que «a habitação social ainda não é uma competência das câmaras municipais», diz Manuela Calado. 

Entre a creche que acolhe todas as crianças do bairro e o pequeno espaço onde vivem pessoas de várias etnias, o primo de Vanusa Coxi aponta para o lote 10 e explica a situação atual do prédio: «a Câmara Municipal trouxe as máquinas para destruir, mas agora isso está parado, pensavam que o dono dos terrenos não queria saber disto, mas afinal quer». 

A verdade é que a Câmara Municipal do Seixal se preparava para demolir as paredes de tijolo quando apareceu o proprietário dos terrenos, responsável por ter deixado a obra inacabada. O atual proprietário recusou a demolição e interpôs um pedido de suspensão em tribunal. Até o caso estar resolvido, a Câmara garante a vigilância do lote 10, pagando a um segurança 24 horas por dia. «Se em três dias realojámos 64 famílias, provavelmente nos dias a seguir teríamos lá tantas ou mais», justifica Manuela Calado. 

As histórias que Vanusa Coxi tem para contar não têm todas o mesmo cenário. A jovem de 33 anos já saiu duas vezes do Bairro da Jamaica, mas acabou sempre por voltar a percorrer aquela descida em direção aos prédios de tijolo inacabados. As dificuldades financeiras, as contas para pagar e os filhos para sustentar trouxeram-na de volta ao sítio onde se sai à rua de pijama – porque, afinal, aquele bairro é uma casa gigante onde vivem pessoas com o futuro suspenso. Sempre que volta a pisar aquela lama tem esperança de um dia sair e de encontrar uma casa, «uma casa verdadeira». 

«Mais vale os meus filhos terem este teto do que não terem teto nenhum», garante enquanto olha à volta e se lembra dos sítios onde já viveu. Quanto aos distúrbios da última segunda feira e às acusações de parte a parte, não tem dúvidas: «Aqui não há lados, há pessoas».