Nós não somos assim

Independentemente da pessoa e das suas circunstâncias, a forma como a prisão de Armando Vara foi tratada pelos media  é vergonhosa.

Senhores diretores de informação, senhores jornalistas, tenham paciência mas não vale tudo. 

Os portugueses não apreciam a humilhação. Poderão ter uma costela de justiceiros, mas só até ao limite do gozo pessoal, género ‘vingançazinha’ sobre os ‘colarinhos brancos’ – que, todavia, não chega à desonra de bater em quem já está por terra. 

Independentemente da pessoa e das suas circunstâncias, a forma como a prisão de Armando Vara foi tratada pelos media é vergonhosa. ‘Diretos’ à porta da residência e da prisão, para mostrar um homem a caminho do cumprimento da pena, são uma desumanidade que não casa com os sentimentos de um povo que preza a dignidade. 

O gosto pela representação degradante consumiu-se nos tempos negros da Inquisição, quando padres e acólitos incitavam um povo boçal a assistir às fogueiras a que chamavam ‘justiça divina’. Mas isso foi na Idade Média, e serviu de vacina. E foi tal o efeito que, passada a curiosidade inicial, o sentimento comum é repudiar a exibição pública nos novos pelourinhos em que se converteram as aberturas dos noticiários televisivos.

Somos herdeiros das luzes dos filósofos gregos e, por natureza, mais dados à compaixão que ao chicote. Compaixão não no sentido de ‘ter pena de…’ mas na capacidade para vestir a pele do outro, a ponto de tomarmos como nossas as suas dores. Os que viveram os tempos das primeiras medalhas de ouro nas olimpíadas, e vibraram com os êxitos de Carlos Lopes, não perderam a empatia com Fernando Mamede, cujos ‘nervos’ o impediam de chegar aos picos de glória.

Os ímpetos de Justiça dos portugueses esgotam-se no buzinar ao condutor do lado, ou, vá lá, ao gozo por ver o aviso de multa no para-brisas do carro que ocupou o lugar que desejávamos para nós. O sangue na cara do agredido incomoda-nos – e, por princípio, estamos contra o agressor. Por mim, sempre senti um enorme orgulho em dizer aos estrangeiros que a solidariedade para com os desafortunados é um dos traços mais nobres do povo português. Tenho-o dito vezes sem conta, e sempre com absoluta convicção.

Não se descortinando razões para pensarmos que os portugueses tenham adquirido instintos estranhos ao seu caráter intrínseco, é difícil compreender que quem decide nas televisões não tenha sensibilidade bastante para poupar os espetadores à humilhação de quem quer que seja. É mais do que duvidoso que existam ganhos de audiência à custa do vexame alheio.    

Para quem preza a dignidade do ser humano, é difícil evitar o desconforto. Antes de ser condenado pela Justiça, Armando Vara já tivera o julgamento na praça pública. Sofreu, agora, uma segunda punição através da exibição ‘jornalística’, que carrega acinte semelhante ao que, no século  XIX, era votado aos condenados que faziam o caminho para o degredo. 
E ainda lhe falta cumprir a sentença ditada pelo tribunal, afinal a única admissível numa sociedade onde a palavra respeito tenha valor superior ao de uma mera entrada no dicionário.