Paris. Praça da República, um campo de batalha | VÍDEO E FOTOS

Na 12.ª semana de protestos dos coletes amarelos em Paris, França, a violência voltou, com a polícia a agir de forma desproporcional e indiscriminada

Num clima de grande antagonismo com as forças de segurança, entre dez mil a 13 mil coletes amarelos (estimativa das autoridades) voltaram pela 12.ª vez a sair às ruas da capital parisiense para exigir a demissão do presidente francês, Emmanuel Macron, e condenar a violência policial. Reunidos na Praça na Bastilha, caminharam pela avenida do Templo até à Praça da República, onde a polícia os aguardava.

A encabeçar o protesto estavam dezenas de vítimas de violência policial das semanas anteriores – já foram registados mais de dois mil feridos entre os manifestantes, com mais de 80 a ficarem em estado grave e com lesões para o resto da vida. Quatro pessoas já perderam um olho ao serem atingidas por projéteis da polícia. Quando chegaram à praça, viram-se, tal como na semana passada, cercados: todas as ruas da praça estavam bloqueadas, com carrinhas e dezenas de agentes a impedir cada passagem. Um manifestante paramédico, Gino Castelot, de 39 anos e socorrista de profissão, já tinha avisado, ainda na Praça da Bastilha, que na da República seria um cenário de “guerra” e de “massacre”.

O ambiente na Praça da República era de convívio e de protesto político pacífico, com algumas bancas de comida a darem um tom de festa. Ouvia-se música, conversava-se e ria-se em conjunto, mas a tensão aumentou rapidamente numa rua de saída da praça. Os manifestantes queriam quebrar o cerco e começaram a pressionar os agentes com palavras e gestos de desafio, culminando no atirar de pedras e garrafas de vidro. Houve até alguns que tentaram quebrar a calçada para terem munições à mão. Por sua vez, a polícia respondeu com canhões de água e granadas de gás lacrimogéneo, numa estratégia para afastar os manifestantes e diminuir a pressão sobre si. Quem protestava pontapeava ou atirava com a mão os projéteis para os desenvolver aos seus donos.

À inicial abordagem calma da polícia seguiu-se, num crescendo, uma estratégia de violência, a partir daí desproporcional e indiscriminada contra os manifestantes e até contra jornalistas. A cada palavra de desafio, os manifestantes – muitos dos quais vestidos de preto, mascarados e sem coletes amarelos e predominantemente jovens – eram recebidos com mais granadas e, depois, com bolas de borracha disparadas por uma arma não-letal apelidada de lançador de bolas defensivo (LBD-40), não esquecendo as tradicionais cargas policiais. Ainda que o LBD seja considerado uma arma não letal, se for disparado para a cabeça ou até mesmo para o peito, dependendo da fisionomia da pessoa em causa, pode causar lesões graves e até a morte. Nos protestos dos coletes amarelos tornou-se a arma preferida dos agentes, que a apontam para o peito e cabeça.

A tensão foi aumentando e os manifestantes continuaram a atirar pedras e garrafas, com a polícia a avançar com cargas de tempos em tempos. Ao primeiro movimento de uma carga policial, os manifestantes afastavam-se, num clássico jogo do rato e do gato que durou horas. Quando os agentes se mantinham estáticos em fileira, os manifestantes dirigiam-se-lhes para condenar a sua atuação, pedindo encarecidamente para pararem o “massacre”. Foi o caso de um manifestante e, quando o fez, recebeu como resposta uma bola de borracha, atingindo-o num olho. Caiu ao chão e os manifestantes paramédicos – eram mais de duas dezenas – imediatamente acorreram em seu socorro. A multidão, a cada gesto da polícia por si considerado desproporcional, revoltava-se e avançava em onda, atirando mais pedras e garrafas. Os polícias, esses, apenas recuavam, ameaçando ripostar. A cada episódio do género a tensão aumentava significativamente.

Nem os caixotes do lixo, trotinetes da câmara municipal de Paris, montras e cadeiras de uma esplanada ficaram a salvo. Foram incendiados ou usados como armas de arremesso contra os agentes, incluindo os próprios cartuchos das bolas de borracha e das granadas de gás lacrimogéneo, que pelas 16 horas locais já enchiam o chão da praça. Eram tantos que o i recolheu um invólucro de uma munição da LBD e uma granada de gás lacrimogéneo em forma de disco. Em resposta, a polícia voltou a endurecer a sua atuação.

Os manifestantes paramédicos corriam de um lado para o outro, ora para socorrer manifestantes vítimas do gás lacrimogéneo, ora vítimas das bolas de borracha e até dos golpes de bastão. Os coletes amarelos faziam um cordão de segurança para protegerem os paramédicos e a vítima de eventuais cargas policiais, mas também para lhes darem espaço para trabalharem. As pessoas não se conheciam, mas sempre que alguém caía, não faltava quem o quisesse e fosse ajudar. Uma solidariedade construída ao longo de semanas de confrontos com as autoridades.

Entre as vítimas que o i viu encontram-se três jornalistas, dois atingidos por projéteis da polícia e outro por uma carga policial, sendo pontapeado e, já no chão, pisado pelos agentes da Gendarmerie. O próprio jornalista do i ouviu o silvo de dois projéteis passarem-lhe rente à cabeça enquanto observava os confrontos encostado a uma árvore. Um manifestante chegou a agredir um jornalista por lhe ter filmado a cara.

Quando alguns agentes decidiam perseguir um manifestante identificado por ter estado a atirar projéteis para o deterem, corriam o risco de ficar isolados dos seus colegas e cercados pelos manifestantes. Aconteceu várias vezes e, sem alternativa, viam-se obrigados a recuar, ameaçando com o disparo de LBDs. Mas apenas o faziam quando conseguiam deter o manifestante visado. Aí, eram recebidos com apupos e com as palavras de ordem: “Toda a gente odeia a polícia” e "Assassinos". E, depois, com mais pedras e garrafas. Ainda que cercados, os agentes mantinham sempre a disciplina de fileira.

O i contou pelo menos uma dezena de detidos pelas autoridades.

Um dos momentos mais emocionantes do protesto foi quando uma mulher, vítima de um projétil LBD numa manifestação anterior, se dirigiu a uma das fileiras da polícia e começou a criticar a sua atuação. Tinha um cartaz preso ao pescoço com uma foto com um olho negro. A multidão ficou a ouvi-la e, gradualmente, começou a tecer palavras de apoio e a aproximar-se. A mulher avançou e os polícias começaram a recuar e a recuar, até o fazerem em passo bastante acelerado. Aí, foram alvo de pedras e garrafas.

Ao contrário dos manifestantes, que estavam exaltados e agressivos, a polícia manteve toda a calma ao logo dos confrontos, ora avançando ora recuando. Alguns agentes, principalmente os da Brigada Anti-Criminalidade da Polícia Nacional, que atuam predominantemente na periferia pobre das grandes cidades francesas, provocavam os manifestantes com gestos obscenos de língua, convidando-os a aproximarem-se para serem alvo das LBDs. Entre o dispositivo policial nas manifestações coletes amarelos em Paris, os agentes da BAC são os mais odiados, sendo acusados de violência extrema e de terem prazer em a praticar.

Com a chegada da noite, os ânimos acalmaram e a polícia começou a avançar com carrinhas para dentro da praça para expulsar os manifestantes, que resistiram. Ao início, colocaram-se de pé em frente às carrinhas, mas foram repelidos com canhões de água e, mais tarde, sentaram-se no chão, numa estratégia comum de desobediência civil. Foram retirados um a um do chão e afastados com os escudos da polícia. Quem quisesse abandonar a praça era obrigado a passar por um cordão de segurança e analisado pela polícia, com muitos dos manifestantes a abandonarem as máscaras e coletes amarelos antes de se dirigirem para uma das muitas saídas da praça.

Ricardo Cabral Fernandes, enviado a Paris, França